Sobre "Meio e Linguagem"

Como este espaço é concebido para reflexão e debate, não podemos deixar nosso próprio pensamento e discurso imune a um olhar crítico. Desse modo, farei reparos ao meu próprio texto, buscando esclarecer pontos obscuros ou inadequados. Isso é tão pertinente quanto fundamental, já que textos de blog também apresentam a função informativa. Justamente por isso esse post foi feito, pois há leitores que se informam através de textos de divulgação/críticas. Tais textos não têm, por excelência, o rigor técnico como sua meta, mas, ao  abordar questões técnicas, precisam, a meu ver, sinalizar onde está havendo simplificações feitas para facilitar o diálogo entre "gêneros textuais" ou, como diria o prof. Campos, entre "retóricas diferentes". Nesse sentido, uma vantagem dos blogs em relação às colunas online de jornais talvez seja justamente poder, com maior facilidade, ter criticada sua própria forma-conteúdo. Fazer divulgação científica sem perder de vista certa precisão metalinguística ou conceitual é, de fato, um desafio, que está sendo realizado muito bem há algum tempo (por exemplo, por Hawking, Mlodinow, blogueiros de divulgação científica etc.). Tendo isso em vista, para orientar o leitor, sinalizarei as alterações propostas no texto do post.


Em relação à matéria da Folha.com publicada ontem.


A temática já foi discutida neste espaço em um post anterior. A questão técnica, neste momento, é esclarecer alguns deslizes do autor da matéria, Hélio Schwartsman, quanto à teoria chomskyana. Para os leigos na teoria, são questões que podem não chamar a atenção, mas, para os linguistas, são questões fundamentais (em termos de debate). Neste caso, estão em pauta aspectos (onto)lógicos da teoria.
O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo linguístico é o chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" (poverty of the stimulus). Em grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a contraexemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado linguístico, um instinto da linguagem. 

Inseri a frase que faltava do parágrafo citado (última). O fato é que o problema principal aqui é de redação, pois, para quem conhece os argumentos e conceitos em jogo, é perceptível que o colunista quis informar que, do ponto de vista chomskyano, não são necessários "contraexemplos gramaticais"; mas, tal qual escrito, não fica claro para quem desconhece a teoria.

Primeiramente, Chomsky não trata  de "padrões aprendidos", aliás, ele se posicionou, em um debate filosófico bastante forte, de forma a problematizar a noção de "aprendizado", questionando se a criança realmente "aprende" estruturas complexas; as crianças, pela teoria, não "aprendem", e sim "adquirem".


E o que elas adquirem? Elas adquirem traços linguísticos paramétricos, isto é, características particulares de uma gramática (podemos pensar em níveis paramétricos, pois, internamente à gramática de um idioma, há variações). O argumento de Chomsky centra-se na direção de que os infantes estão dotados do "conhecimento" de que as regras são dependentes da estrutura, parte da Faculdade da Linguagem, um conhecimento inato e intuitivo. Chomsky está ancorado em dados empíricos, não somente em derivações lógicas, pois, desde muito pequenas, as crianças dominam um conhecimento "semântico", como a propriedade de "agentividade" (em "Maria comeu demais na Páscoa", a criança "sabe" que Maria foi agente da ação, do mesmo modo que em "Muitos chocolates foram comidos por Maria", mas diferentemente de Maria engordou na Páscoa), e "estrutural", como a de "hierarquia" (em "O chocolate que está na caixa está bom", a criança "sabe" que o segundo verbo é o verbo da "oração principal"; estamos diante de terminologia linguística para descrevermos esse tipo de conhecimento gramatical). Como as crianças "aprenderiam" tais complexidades tão rapidamente?


O conteúdo entre parêntesis, que fique claro, já é uma perspectiva minha sobre a teoria, mais notadamente quando me refiro à noção de "níveis paramétricos".

Ponto a ser observado: o estímulo negativo não é necessário, sendo essa justamente uma evidência pró Faculdade da Linguagem. A criança, dotada desse conhecimento linguístico inato, seleciona os padrões gramaticais do idioma ao qual está exposta, não necessitando de "correções gramaticais" ou de estímulo negativo, ou seja, de uma exposição do que não seria gramatical no idioma. O argumento da Pobreza de Estímulo é justamente o fato de que, com base em tão poucos dados, a criança adquire uma gramática de linguagem natural.

Essas questões são centrais para entendermos a teoria (que apresentou variações ao longo dos anos) adequadamente, permitindo que possamos, assim, avaliá-la em suas bases. Aqui, não tenciono dizer que o colunista tomou posição teórica, antes digo que precisamos compreender os argumentos em jogo, possibilitando, desse modo, a compreensão da corroboração ou refutação do modelo pelos pesquisadores.



Como citado pela Aline em seu comentário, o colunista escreve "parâmetros inatos", quando o apropriado seria "princípios inatos"; por que é relevante dizermos isso? Pois essa é uma dicotomia, uma dupla-ordenada da teoria; e, ao trocarmos "princípios" por "parâmetros", estamos não apenas trocando vocábulos, mas conceitos (estamos no nível metalinguístico!).


Por fim, vale dizer que o colunista mostra-se ciente do tipo de comunicação possibilitada pela Cultura Digital (este post inclusive ilustra a natureza desse diálogo de formas e conteúdos).
As próximas semanas deverão ser agitadas nos blogs de linguística. Pelo que pude antever, a discussão terá altos teores de estatística, o que a tornará meio metafísica para nós, mortais comuns.

devendo, igualmente, estar ciente de que seus textos são lidos por leitores mais leigos ou menos leigos nas diversas temáticas teóricas, e da consequência deste fato para a "retórica" de seu texto.


Assim, temos a oportunidade, nesse contexto digitalmente multiforme (!), de ler proposições relevantemente estranhas (a nós!). Ao discutirmos essas questões, discutimos outras relacionadas, já que encontramos nas colunas online (a exemplo da aqui discutida) diversos "parâmetros retóricos": no campo lexical ("bafafá", "anátema",...); no das expressões ("pool" genético, "'mainstream' na linguística norte-americana", "meia dúzia de vezes",...); no dos pressupostos ("menos problemático", "a questão não é trivial", "a analogia entre idioma e ser vivo só funciona até certo ponto", "seria mais elegante para a teoria se", "a velha hipótese Sapir-Whorf",...). 

Parece ser interessante pesarmos, então, que a divulgação científica é realmente desafiadora, justamente porque (i) trabalha com diferentes níveis retóricos e (ii) necessita buscar um certo equilíbrio para ser relevantemente informativa: ao mesmo tempo compreensível (à generalidade leitora) e precisa (em relação à metalinguagem utilizada)!

Comentários

  1. Para começar, tenho que dizer que Hélio Schwartsman inicia sua matéria ovacionando a Linguística e, criando assim, um empatia para com aqueles que poderiam, possivlemente, criticar e que certamente criticariam seu artigo. Ele parece defender as novas pesquisas, as antigas colocações de Chomsky... enfim, não há posicionamento teórico e nem poderia.
    Sua única crítica parece cair sobre a defesa chomskyana dos "parâmetros universais", mas acho que ele quis dizer "pricípios universais"... mas isso é só para constar que sua crítica é também um de seus erros na matéria.
    Ademais, a questão da evolução cultural, a par do que Steven Pinker já escreveu em seu artigo O Nicho Cognitivo, é um elemento provável que pode lançar luz sobre uma outra possibilidade de desenvolvimento da linguagem, assim como os elementos genéticos e biológicos que trabalham na produção da linguagem.
    Em relação ao berço da linguagem... I would say is a wishiful thinking to establish Africa as the cradle of language, since it is also the cradle of life...
    Questionar, por fim, a UG (Universal Grammar) é uma tentativa de desfazer a defesa de universais humanos, mas o fato é que eles existem...não só nas diferentes linguagens, mesmo em famílias linguísticas diferentes, mas em outros níveis da vida humana.

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  2. Realmente, ele foi bem entusiasta com a área. A questão da evolução cultural é bastante interessante e complexa, e aguça um modelo tão interessante quanto a questão. Quanto ao berço da linguagem, há descobertas que agitam o universo teórico, desde aquele dado arqueológico (http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultimas-noticias/bbc/2010/12/28/fossil-de-dentes-em-israel-pode-mudar-teoria-da-evolucao-humana.jhtm). Compor um quadro teórico nessas condições é um desafio relevante! Quanto à matéria de divulgação científica pontuada, penso que é sempre bom trazer à pauta debates pertinentes, mesmo que aconteçam possíveis deslizes de exposição dos argumentos.

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