E$trangeiri$mo$


Ano passado, em uma oportunidade, discutíamos sobre estrangeirismos, e mais destacadamente acerca dos anglicismos. Em uma rádio da capital, a Rádio Gaúcha, a seguinte enquete abria os trabalhos de discussão do dia: O uso frequente de palavras inglesas no Brasil reflete uma Submissão Cultural ou um Processo Natural?

O professor Jorge Campos da Costa, na PUCRS, levantou alguns pontos em relação à discussão:

1 a linguagem é  propriedade do cérebro - princípios; línguas são dependentes da forma de vida, da cultura, em última instância – parâmetros;

2 ninguém jamais mudou a língua, o povo é soberano em matéria de uso da linguagem, é como se fosse uma teia moldada pela forma de viver da aranha, o uso da língua não se impõe por decreto;

3 os estrangeirismos são apenas a ponta do iceberg; na profundidade das águas, estão as relações de   um mundo globalizado: econômicas, culturais; e essas não se movem apenas pelo nosso desejo - forças históricas trouxeram o mundo até aqui;

4 esse tipo de reação de purismo cultural já foi mais forte. Nossos avós eram pressionados a usar hidropoteca para galocha, convescote para piquinique. Restaurante, elite, abajur eram  considerados francesismos, galicismos;

5 há interfaces culturais, os anglicismos apareceram fortemente com a cultura tecnológica importada.

Desenvolverei aqui duas das questões, uma cultural e outra técnica.

Como preâmbulo - e me valendo de uma argumentação igualmente apresentada pelo prof. Jorge Campos, quando tratando sobre um tópico relativo à lógica do pensamento -, direi que não há uma disjunção exclusiva em questão. Assim sendo, mesmo que a proposta do programa de rádio representasse justamente a relevância da disjunção, o tema a nega. A própria “dominação” cultural é um processo natural. A sobreposição de uma cultura à outra é algo inevitável, na medida em que as aproximações fazem surgir domínios de valor, independente dos parâmetros em jogo.

Questão 1 – Cultural

Pensemos na polêmica em relação a esse tema. É um tanto estranho observarmos que as culturas estão cada vez mais próximas através da intensificação do processo de globalização, sobretudo pelas articulações econômicas (como é o caso do BRIC, principalmente Brasil-China), e que a linguagem fique alijada desse processo. A Cultura, descrita em diferentes instâncias de uma determinada sociedade, pode se referir à cultura de massa, à cultura digital, à cultura popular, etc., mas, em sentido amplo, em última análise, se refere ao modo de vida de uma dada sociedade, à interação natural. Nesse contexto cultural, as línguas podem ser vistas como a ponta do iceberg (ou bloco de gelo!) - o que aparece na superfície da cultura -, mas estando relacionadas a um sistema mais amplo de relações que interferem e que estão na base das formas que emergem nos diferentes idiomas, ou seja, relações geo-políticas (diplomáticas, aproximações), econômicas (importação de tecnologias, inteligência), sociais (status, arte).

A troca cultural, desse modo, é um processo inevitável, que se dá em todos os níveis da vida de uma determinada organização social. É compreensível que uma cultura mais estável e com maior saliência dentro de um dado cenário domine a centralidade dos processos, gerando argumentos para a posição a favor de uma leitura de imposição cultural.

Mas, e como é de se esperar, os processos são criados e modelam a própria cultura, de modo que hoje o processo de difusão digital acelera a interculturalidade e ameaça uma certa leitura da homogeneidade. Um exemplo no Brasil é a cultura oriental mais presente através da animação gráfica e da literatura - os animes e mangás (popularizando as formas de tratamento San, Kan, Chan, Sama, etc., paralelamente aos populares Lady, Sir, Lord, Miss, etc.), por exemplo.

Explorando o contexto brasileiro, em contraposição ao francês ou português, que historicamente tentaram manter suas culturas mais distantes de influências externas, temos no Brasil um país de grande extensão territorial, no qual a própria formação da cultura já engloba a diversidade étnica e de dialetos, com suas variações regionais e influências de outras línguas. Dado esse contexto, uma normatização cultural em termos de língua, como foi pensada na França e como se observa em Portugal - países menos extensos e de cultura mais homogênea - é mais complexo, senão inviável. É só pensarmos nas viagens e congressos, onde cidadãos de uma ponta e de outra do Brasil apresentam dificuldades de compreensão mútua por questões linguísticas. Homogeneizar ou impor limites linguísticos a um grupo tão diverso - como muitos já propuseram - é um trabalho hercúleo e despropositado. 

No Brasil, vemos uma postura contrária à adoção de termos estrangeiros, geralmente no que tange aos anglicismos, por uma questão político-econômica, por estarmos no bloco de influência dos Estados Unidos (marcas, tecnologia, inteligência, arte). Mas, como o próprio aspecto do verbo utilizado nos indica, “estamos” sob influência, o que não quer dizer que sempre estivemos ou que estaremos para sempre. A língua, novamente, faz parte de um contexto de civilização e de sua lógica e movimento. No esporte, a maioria dos campeonatos mundiais possui a terminologia esportiva padronizada em inglês. Nas universidades, temos os congressos internacionais, com seus coffee breaks (intervalos para o café) e com seus papers (artigos), que apresentam abstracts (resumos) e keywords (palavras-chave). Há algumas exceções a essa influência no Brasil, como é o caso de um conjunto de artes marciais, que adotam a terminologia padrão em japonês, chinês ou coreano. Mas, novamente, essa é uma questão das relações vigentes hoje. Nada impede uma mudança natural nesses parâmetros.

Em relação ao fazer acadêmico, muitos papers de estudantes brasileiros e estrangeiros são rejeitados em países de Língua Inglesa, sobretudo nos EUA, pois os avaliadores alegam que, embora o texto esteja escrito com o vocabulário em língua inglesa, eles não reconhecem a gramática da língua ali expressa, acusando problemas de gramaticalidade. O mesmo acontece com professores de segunda língua e língua estrangeira, ao orientar os seus alunos quanto ao fato de que, não raro, eles estão utilizando o vocabulário de uma língua e a gramática de outra.

A língua propriamente dita é, desse modo, menos suscetível a lesões do que se parece, já que, tal qual um molde, permite manipulações e criações por um recém-iniciado à arte sem dano à matéria-prima, esta escudada na própria mão do manipulador, que, por um conhecimento em parte inato, em parte adquirido, sabe como moldar e dar forma ao amorfo. Sobre esse aspecto:



Questão 2 – Questão técnica: Linguística


A outra questão é a relativa ao ponto de vista técnico sobre a propriedade fundamental das línguas, o que define sua gramática, isto é, seu conjunto de regras de estruturação. Sob essa perspectiva, a polêmica que se configura está sedimentada sobre um nível altamente variável de um idioma: o lexical. Ou seja, o léxico aumenta, varia, se renova e cai em desuso e a língua ainda é reconhecida, dado que a engrenagem fonológico-sintática permanece constante, pois ela abarca as regras universais e particulares de cada língua em termos de oralidade e de organicidade frasal, já que se tratam de regularidades estruturais. É por haver tais regularidades que dizemos que surfamos, googlamos, twitamos. É por haver regularidades que vamos ao /’bigi/ e não ao /bIg/.  Interagimos com o mundo das coisas e as coisas do mundo, querendo saber os nomes dados a elas e os pronunciando como podemos e queremos. Somos curiosos a ponto de desejarmos saber o nome mais conhecido das coisas ao redor e modistas a ponto de querer utilizá-los, mas também somos maternais ao adotarmos as coisas alheias ou ainda renegadores ao rejeitarmos as nossas.

Mas - como questiona o prof. Jorge Campos da Costa - o que nos faz ser como somos, do ponto de vista cognitivo-comunicativo? Será que um princípio de relevância operaria nesse processo recorrente? Ao guardar na memória mais um nome, tenho um gasto de processamento em cômputo, mas, em compensação, tenho o ganho de um vocábulo e, acoplado, o ganho social de seu uso privilegiado. No pago 1 levo 2, as mentes comunicativas renovam seu estoque a arrojam suas conexões.

O signo linguístico é arbitrário, nas palavras de Saussure, é uma relação simbólica, nas palavras de Peirce. Não há nenhuma motivação ou raramente há uma motivação de outra ordem que não a da convenção para unir um significante a um significado e um signo a um objeto, assim, tenho carro, car, coche, etc., convivendo no mundo da linguagem. É desse modo que há a criação de palavras, mas não de regras morfo-fonológicas; há criação de sentenças, mas não de regras sintáticas; há criação de neologismos, mas não de regras de formação de palavras.

Assim, não criemos casos, mas ambientes para o convívio pacífico entre os homens, e, em consequência, com sua cultura, seu modo de pensar e interagir!

A linguagem, como diz o professor Jorge Campos, e não nos esqueçamos, é estudada à parte de outras formas culturais por uma questão de metodologia, não por um apartamento natural. Dessa forma, não podemos fechar a nossa mente para o que a mente alheia criou, pois, se falamos o que queremos, falamos através do que a comunidade linguística em que estamos inseridos nos oferta. Eu me sirvo do que tenho na mesa, e só há na mesa o que um grupo colhe em dado momento, através das regras naturais e impostas pelo próprio grupo. Não adianta legislarmos sobre algo alheio à legislação, e como diz Possenti: “ (...) para proteger nossa língua, temos que tornar nossa economia poderosa e nossa cultura tão charmosa que nenhuma outra nos tente”. 

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