O transeunte estava cansado de tanto desgaste emocional provindo de cada informação encontrada que o fazia relacionar a si. Sentou-se próximo a uma barraca de livros à venda e pôs-se a admirar os títulos expostos na primeira fileira. Os livros eram antigos e contrastavam com uma menina que os manuseava. Ele se aproximou da menina e encarou a obra que ela trazia na mão.
- Não compraria este exemplar.
A menina revidou o olhar firme:
- Desculpe, não compreendi.
- Eu disse que não deves comprar este livro – insistiu.
A menina devolveu o livro ao estande de madeira.
- Quem lhe disse que eu estou interessada em comprá-lo?
- Meus olhos – disse, sorrindo, para a jovem.
Ela fixou os olhos na expressão agora terna do transeunte. Ele vestia roupas tão comuns que nada revelavam a seu respeito. Isso já era algo extremamente revelador.
- Um livro por um café? – interrogou ela, retornando o sorriso com os olhos.
- Não gosto de livros nem de cafés – suspirou.
- Por isso disse para eu não comprar o livro? – com expressão taxativa.
- Por que quiseste tomar um café comigo, a propósito? – e, após a pausa de uma longa respiração - Falei apenas para te ver. Queria atestar a tua relação com o que encontravas diante de ti.
- E eu não tenho explicação para a minha reação, mas, diferentemente de ti, eu queria dizer algo.
O tempo custou a passar, mas quando voltaram a refletir sobre o incidente comunicativo, já estavam em um café e discutiam o texto de Ricardo Ramos. Ele a interrogou:
- Como não viste apenas nomes onde só havia nomes?
- Vi atrás das palavras, através delas! Vi o que elas evocavam e vi que evocavam a minha vivência.
- Então, elas evocavam o teu mundo?
- Sem um mundo em minha cabeça, jamais daria sentido ou compreenderia o teu mundo ou o mundo ali indicado. Sim, pois ali havia um mundo, havia uma rotina, havia referências diretas e implícitas às coisas, as quais de alguma forma relacionam-se com algo de significativo das minhas ideias sobre as coisas.
- É no mínimo interessante o fato de que palavras que não são de ação possam narrar. Lá, unidades estáticas refletem ações e acionam reflexões. Mas, e se, nessa relação intermediária entre o mundo ali delineado e o seu, houver uma lacuna extrema?
- Ainda serei capaz de me comunicar com este mundo, ajustando-o o máximo possível ao meu.
- Mas falo naqueles casos extremos, onde a possibilidade de ajustar é ínfima, não creio que seja possível tal comunicação. E digo mais, não creio que seja pretendido pelo criador do outro mundo. Por que tu achas que os mundos devem sempre se confluir? Não estás pensando em uma homogeneidade superficial, em uma globalização cognitiva?
- Em quais casos tu pensaste? Pois o mais recorrente a mim é este: não conheço muito do teu mundo, não sei tua origem nem mesmo teu nome. Só tenho suposições a partir do que tu falas e do modo como falas. Vejo tua postura, analiso teus trajes, te percebo enquanto alguém que tem forma e traços característicos. Tudo isso que está a minha vista - e mais o que está e que ainda não vejo - é para mim uma forma de acessibilidade ao teu mundo. Os nossos mundos podem ter uma lacuna extrema, mas ainda há uma parcela de experiência que nos une.
- Na verdade, pensei em um filme. Um filme que é fruto de reflexão do início ao fim, que é elaborado em detalhes, que é resultado de manipulação imperceptível, às vezes. Mesmo quando há pouca manipulação, as coisas daquele mundo são somente daquele mundo. Digo, mesmo quando um filme apresenta um cenário dito real, inalterado, previamente existente, ele adquire uma significação própria naquele uso, naquele mundo. Quando um filme representa o mais alto nível do irreal, a ficção mais ficcional, tu ainda te comunicas com o que ali se apresenta?
- Sim, o filme não alterou completamente a lógica do meu real, a lógica das relações e a própria relação entre as coisas. O filme desconstruiu o meu mundo, mas construiu um outro capaz de coadunar-se ao meu. E quando tu falas da intenção do criador da diegese e quando tu falas da homogeneidade, não me parece que tu estás falando com propriedade.
- Eram apenas questões que queria expor a ti como aquele livro apresentava-se exposto em tua mão. Mas parece que as tuas relações com as ideias são diferentes das tuas relações com os objetos. Quando te avistei, iniciei a experienciar teu mundo; construí a primeira tomada da primeira cena do filme que ainda se desenrola.
- Mas as afirmações escondidas nas tuas perguntas não se sustentam. Nem o filme que julgas existir é possível enquanto tal. Pois ele é só teu, como disseste, tu construiu a cena. Assim, não houve comunicação, houve apenas a alteração do teu mundo ou, como queiras, a criação do teu filme.
- Sim, eu criei o filme e nele me comunico contigo. Tu pensas na comunicação, no diálogo, no uso comunicativo da linguagem. Eu estou pensando na linguagem como subsídio para o meu diálogo com as coisas do meu mundo e, depois disso, para a aproximação da minha realidade com as demais.
- Mas na medida em que te aproxima do mundo de outro pela linguagem, que age sobre o outro, estás em comunicação. Não há como criar um discurso elaborado sem tencionar atingir o mundo de alguém. Dialogar com a história do outro não é homogeneizar o outro, é antes estabelecer uma relação.
- Mas não tenciono estabelecer relações fortes, não tenciono me aprofundar na lógica do outro, não tenciono dialogar com tudo que é dito, antes prefiro dialogar com o que não fora dito.
- Neste momento, estás dialogando comigo. Falar com o outro é estabelecer relações fortes, é dividir suposições, expectativas, escolhas. Estamos dividindo um pouco do nosso mundo, do nosso idioma, do nosso espaço agora.
- É que tu encaras a comunicação com muita seriedade. Eu gosto de ver a arte antes da intenção. Para mim, dialogar é o mesmo que criar um brinquedo com material reciclável, sendo que sua matéria-prima não é finita em suas possibilidades. Para mim, falar com os outros é brincar de esconde-esconde de ideias, nunca dando ao outro a certeza de tê-las encontrado. Podemos descobri-las muito depois, em qualquer momento de qualquer lugar.
- É uma maneira singela e, à primeira vista, superficial de ponderar. Tenho que ir. Não sei o que faço aqui, não sei como viemos para cá, não sei nem por que falamos sobre isso.
- Deves ir. Estamos começando a nos entender e não gosto de filmes com final feliz.
- Não compraria este exemplar.
A menina revidou o olhar firme:
- Desculpe, não compreendi.
- Eu disse que não deves comprar este livro – insistiu.
A menina devolveu o livro ao estande de madeira.
- Quem lhe disse que eu estou interessada em comprá-lo?
- Meus olhos – disse, sorrindo, para a jovem.
Ela fixou os olhos na expressão agora terna do transeunte. Ele vestia roupas tão comuns que nada revelavam a seu respeito. Isso já era algo extremamente revelador.
- Um livro por um café? – interrogou ela, retornando o sorriso com os olhos.
- Não gosto de livros nem de cafés – suspirou.
- Por isso disse para eu não comprar o livro? – com expressão taxativa.
- Por que quiseste tomar um café comigo, a propósito? – e, após a pausa de uma longa respiração - Falei apenas para te ver. Queria atestar a tua relação com o que encontravas diante de ti.
- E eu não tenho explicação para a minha reação, mas, diferentemente de ti, eu queria dizer algo.
O tempo custou a passar, mas quando voltaram a refletir sobre o incidente comunicativo, já estavam em um café e discutiam o texto de Ricardo Ramos. Ele a interrogou:
- Como não viste apenas nomes onde só havia nomes?
- Vi atrás das palavras, através delas! Vi o que elas evocavam e vi que evocavam a minha vivência.
- Então, elas evocavam o teu mundo?
- Sem um mundo em minha cabeça, jamais daria sentido ou compreenderia o teu mundo ou o mundo ali indicado. Sim, pois ali havia um mundo, havia uma rotina, havia referências diretas e implícitas às coisas, as quais de alguma forma relacionam-se com algo de significativo das minhas ideias sobre as coisas.
- É no mínimo interessante o fato de que palavras que não são de ação possam narrar. Lá, unidades estáticas refletem ações e acionam reflexões. Mas, e se, nessa relação intermediária entre o mundo ali delineado e o seu, houver uma lacuna extrema?
- Ainda serei capaz de me comunicar com este mundo, ajustando-o o máximo possível ao meu.
- Mas falo naqueles casos extremos, onde a possibilidade de ajustar é ínfima, não creio que seja possível tal comunicação. E digo mais, não creio que seja pretendido pelo criador do outro mundo. Por que tu achas que os mundos devem sempre se confluir? Não estás pensando em uma homogeneidade superficial, em uma globalização cognitiva?
- Em quais casos tu pensaste? Pois o mais recorrente a mim é este: não conheço muito do teu mundo, não sei tua origem nem mesmo teu nome. Só tenho suposições a partir do que tu falas e do modo como falas. Vejo tua postura, analiso teus trajes, te percebo enquanto alguém que tem forma e traços característicos. Tudo isso que está a minha vista - e mais o que está e que ainda não vejo - é para mim uma forma de acessibilidade ao teu mundo. Os nossos mundos podem ter uma lacuna extrema, mas ainda há uma parcela de experiência que nos une.
- Na verdade, pensei em um filme. Um filme que é fruto de reflexão do início ao fim, que é elaborado em detalhes, que é resultado de manipulação imperceptível, às vezes. Mesmo quando há pouca manipulação, as coisas daquele mundo são somente daquele mundo. Digo, mesmo quando um filme apresenta um cenário dito real, inalterado, previamente existente, ele adquire uma significação própria naquele uso, naquele mundo. Quando um filme representa o mais alto nível do irreal, a ficção mais ficcional, tu ainda te comunicas com o que ali se apresenta?
- Sim, o filme não alterou completamente a lógica do meu real, a lógica das relações e a própria relação entre as coisas. O filme desconstruiu o meu mundo, mas construiu um outro capaz de coadunar-se ao meu. E quando tu falas da intenção do criador da diegese e quando tu falas da homogeneidade, não me parece que tu estás falando com propriedade.
- Eram apenas questões que queria expor a ti como aquele livro apresentava-se exposto em tua mão. Mas parece que as tuas relações com as ideias são diferentes das tuas relações com os objetos. Quando te avistei, iniciei a experienciar teu mundo; construí a primeira tomada da primeira cena do filme que ainda se desenrola.
- Mas as afirmações escondidas nas tuas perguntas não se sustentam. Nem o filme que julgas existir é possível enquanto tal. Pois ele é só teu, como disseste, tu construiu a cena. Assim, não houve comunicação, houve apenas a alteração do teu mundo ou, como queiras, a criação do teu filme.
- Sim, eu criei o filme e nele me comunico contigo. Tu pensas na comunicação, no diálogo, no uso comunicativo da linguagem. Eu estou pensando na linguagem como subsídio para o meu diálogo com as coisas do meu mundo e, depois disso, para a aproximação da minha realidade com as demais.
- Mas na medida em que te aproxima do mundo de outro pela linguagem, que age sobre o outro, estás em comunicação. Não há como criar um discurso elaborado sem tencionar atingir o mundo de alguém. Dialogar com a história do outro não é homogeneizar o outro, é antes estabelecer uma relação.
- Mas não tenciono estabelecer relações fortes, não tenciono me aprofundar na lógica do outro, não tenciono dialogar com tudo que é dito, antes prefiro dialogar com o que não fora dito.
- Neste momento, estás dialogando comigo. Falar com o outro é estabelecer relações fortes, é dividir suposições, expectativas, escolhas. Estamos dividindo um pouco do nosso mundo, do nosso idioma, do nosso espaço agora.
- É que tu encaras a comunicação com muita seriedade. Eu gosto de ver a arte antes da intenção. Para mim, dialogar é o mesmo que criar um brinquedo com material reciclável, sendo que sua matéria-prima não é finita em suas possibilidades. Para mim, falar com os outros é brincar de esconde-esconde de ideias, nunca dando ao outro a certeza de tê-las encontrado. Podemos descobri-las muito depois, em qualquer momento de qualquer lugar.
- É uma maneira singela e, à primeira vista, superficial de ponderar. Tenho que ir. Não sei o que faço aqui, não sei como viemos para cá, não sei nem por que falamos sobre isso.
- Deves ir. Estamos começando a nos entender e não gosto de filmes com final feliz.
Meoo, que papo de looouuco!!:*
ResponderExcluirO teu mundo, o meu mundo, filme isso, filme aquilo, livro, cafezinho, céus!!! Pode parar aqui mesmo motora, quero descer...hehehe!
Legal a iniciativa, Stéphane. Toca ficha no projeto e não esqueça de me atualizar sobre as novidades.
Parabéns!
A.M
Entre loucos, o papo é esse, Arthur!! Obrigada pela visita ao blog e espero as contribuições do jornalista aí!
ResponderExcluirUm texto excelente!!! Pode parecer um pouco louco (rsrsrs), mas a comunicação e o diálogo se constroem nas mais diversas relações cotidianas, sejam elas formais, normais, loucas, ou inusitadas.
ResponderExcluirAdoro este site, pois só aqui encontro outra professora de Letras, tão louca quanto eu!! rsrs
Bjs Stéphane!!!
Obrigada, Yasmim! Espero contribuições tuas aqui também!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMenina!! Tu estás anos luz à nossa frente!! Parabéns, teu texto é inovador, inquietante, nos faz pensar (coisa rara!)...
ResponderExcluirPlease, me manda notícias qdo postares novos textos!!
O trabalho está ótimo, continuem!!
Bjos.
Ana Ramalho
Achei o texto muito interessante e inovador( parabéns =D).
ResponderExcluirLevantou uma questão, que me parece ser ao mesmo tempo muito clara de sentir e confusa de compreender. Talvez eu não tenha perícia suficiente para absorver todo o conteúdo da obra, mas percebi que nesse conto existe um duelo de pensadores que expunham seus pontos de vista, e que idéias malucas (hehehe).
No início, começam com a comunicação e as relações inter-pessoais... chegando ao fato que esses relacionamentos entre pessoas influencia a vida de cada um, independente se for um estranho ou um amigo de muito tempo. E, independente se for uma influencia boa ou ruim, feliz ou triste, ...
Por fim, o texto de certa forma demonstra duas maneiras de como encarar a comunicação e como utilizá-la, o que me faz pensar que é diretamente relacionado com atitude de vida que podemos tomar, e não apenas de comunicação...
Finalizarei meu comentário explicitando a atitude de vida que utilizo e acredito, e que foi muito bem exposta pelo Sr. Estranho:
"Eu gosto de ver a arte antes da intenção. Para mim, viver é o mesmo que criar um brinquedo com material reciclável, sendo que sua matéria-prima não é finita em suas possibilidades."
100Noção
Parece que o tom da leitura é esse mesmo, 100 Noção! Lendo o conteúdo como algo que a primeira vista parece “claro de sentir e confuso de compreender”! O texto nasceu, entre experiências e observações comunicativas, quando um professor de Filosofia da Linguagem, Sérgio Sardi, lançou o desafio de expressarmos tais conteúdos sob roupagens textuais diversas. Unido a esse desafio, o professor de Lingüística Jorge Campos falava sobre o processo inferencial que perpassa nossa vida... Então, tua perspectiva de que o modo como encaramos a comunicação relaciona-se diretamente ao modo como encaramos a vida encontra muitos ecos...
ResponderExcluirE a chave de fenda do teu pai?hhehe. Fiquei esperando que ela aparecesse a qualquer momento!
ResponderExcluirComo diria o J. as pessoas complexas são as mais interessantes. Isso é válido para os textos que são os mundos possíveis de seus autores.