Não podia acreditar naquilo. Ele tinha mesmo virado a situação do jogo. Como um
bom perdedor, derrubei o meu rei do tabuleiro e comecei a guardar as peças.
Fernando sempre foi muito mais que um primo para mim. Meus quatro avós são
também os dele, seu pai é meu tio por parte de mãe e sua mãe é minha tia por
parte de pai. Assim, considero que seja meu "quase irmão". Na infância em São
Paulo, éramos muito próximos. Nossas famílias sempre faziam atividades de lazer
juntas. Íamos ao sítio, à casa da vó, ao parque, fazer piquenique.
Tínhamos diversos apelidos. Fezô era o seu principal, o meu, Lezô. Fezô me
ensinou muitas coisas sobre brincadeiras, estudos, computadores, jogos. Foi com
ele que aprendi a jogar xadrez. Ainda me lembro da primeira partida. Lógico, ele
ganhou! E, no final, perguntei por que não comeu o meu rei. Ele disse que não se
come o rei do adversário. É elegante que o próprio perdedor derrube o seu rei e
guarde todas as peças do jogo. E assim o fiz.
Passaram-se anos e muitos jogos de xadrez. Jamais ganhava um sequer. Quando
completei dez anos, minha família teve que se mudar para Porto Alegre, por causa
do trabalho de meu pai. Assim, apesar de continuarmos nos falando, perdemos aquele
contato intenso que tínhamos e, não por nossa vontade, acabamos nos afastando um
pouco.
Fui levando a minha vida em Porto Alegre, enquanto percebia que não
compartilhávamos mais todas as novidades por causa da distância. Recebia
notícias de São Paulo de vez em quando, até que uma delas não me agradou muito.
Fezô estava com depressão, uma doença séria e muito perigosa. Mas, com quinze
anos, eu não entendia realmente quão séria e como essa doença é capaz de
transformar as pessoas.
Um ano depois, fui tirar minhas férias em São Paulo. Conversamos, passeamos, nos
divertimos e, lógico, jogamos xadrez. O jogo mais intenso que fizemos até hoje.
Demoramos horas. Foi quando percebi: estava prestes a dar o meu primeiro
cheque-mate nele! Seria real? Eu estava certo mesmo? Cheque-mate? Verifiquei
todas as possibilidades de jogo. Todos os movimentos que ele poderia fazer após
a minha jogada. Sim, era isso mesmo! Eu iria ganhar dele! Olhei sério para o
tabuleiro e fiz a jogada. Olhei para ele.
- Cheque-mate! - murmurei, ainda com voz de incerteza.
Ele se concentrou ao tabuleiro e ficou alguns minutos refletindo. Então olhou
pra mim com uma expressão que me pareceu ser um sorriso. Primeiro pensei ser um
sorriso de orgulho por eu ter finalmente conseguido. Eu estaria superando meu
próprio mestre. Mas logo achei que era um sorriso irônico, pois ele devia ter
encontrado uma saída. Não podia ser! Onde estava a saída? Eu achei que tinha
pensado em todas as possibilidades! Onde? Notei que ele ia me falar.
- Olha só, Lezô - disse pausadamente, me dando ainda mais agonia -, me diz uma
coisa.
Foi, então, que veio a frase mais surpreendente que eu jamais poderia esperar.
- Qual é o sentido da vida?
Como assim? Ele não ia falar do jogo? Que diabos de pergunta era aquela? Não
entendi nada naquele momento, mas, olhando pra ele, percebi que realmente estava
esperando uma resposta. Sim, eu precisava responder. Mas o que um garoto com
dezesseis anos sabe sobre filosofia de vida? Ele não podia estar fazendo isso
comigo! Comecei a me dar conta de que a depressão realmente era muito mais séria
do que eu podia imaginar. A verdade é que meu pensamento vagava por diversas
coisas, menos na resposta àquela pergunta. Não queria deixá-lo sem essa
resposta, mas a minha mente já não conseguia formular mais nada.
Não podia acreditar naquilo. Ele tinha mesmo virado a situação do jogo. Como um
bom perdedor, derrubei o meu rei do tabuleiro e comecei a guardar as peças. O
silêncio ensurdecedor de olhares soltos e pensamentos intensos foi interrompido
pelo barulho do tabuleiro se fechando. Um som grave, oco.
Depois daquelas minhas férias, diminuiu ainda mais a frequência com que nos
víamos. E nas poucas vezes em que isso acontecia, sempre quis dar aquela
resposta, mas na verdade eu nunca a tinha. Fui sabendo que a doença estava
piorando e que ele já havia experimentado algumas vezes a vontade de morrer.
Queria muito ajudá-lo, mas a nossa falta de contato, a distância e a minha
ignorância em saber ajudar impediam que isso se concretizasse.
Foi então que um dia, chegando em casa, vi minha mãe sentada séria no sofá. Eu
já sabia o que era. Não quis esperar ela terminar de contar e fui correndo para
o meu quarto afogar toda a tristeza que eu sentia naquele momento. Quão forte
pode ser uma doença capaz de fazer com que alguém queira tirar a própria
vida? Tão forte é que contagia e adoece todos que estão a sua volta.
No velório, olhei pela última vez o seu rosto. Ele estava deitado naquele imenso
caixão fúnebre, duro como o rei guardado na caixa do tabuleiro. Sim, este jogo
havia acabado para ele. Mais uma vez, o silêncio ensurdecedor de olhares soltos e
pensamentos intensos foi interrompido, agora pelo som do caixão se fechando. Um
som grave, oco.
Ajudei a levar seu caixão até a sepultura. Foi o momento mais doloroso. O peso
de carregar meu irmão nos braços era como um elefante de chumbo. Minhas
pernas tremiam e andavam sem eu pensar em fazê-lo. Meu coração pesava tanto
quanto o caixão. A mão suada parecia que poderia deixá-lo cair, como se o peso
já não bastasse. A garganta parecia presa, como se houvesse uma corda dando um
nó em volta dela, e eu mal conseguia engolir meus soluços. As lágrimas
encharcaram a minha cara e eu não era capaz de ver onde daria o próximo passo.
No final do enterro, pouco antes de o seu caixão desaparecer por completo,
finalmente me dei conta. Durou o mesmo tempo da quebra do silêncio das duas
caixas para eu dar a ele o que me pedira.
- Fezô! - sussurrei em direção à cova - O sentido da vida é exatamente dar
sentido a ela.
Foi então que minhas pernas pararam de tremer, minha mão secou, minha garganta
se soltou e o meu coração foi ficando leve. Minha alma parecia estar saltando de
meu corpo, como se estivesse com vontade de flutuar. Senti um arrepio
confortável e entendi que a vida dele fez muito sentido para mim.
Fernando sempre foi muito mais que um primo para mim. Meus quatro avós são
também os dele, seu pai é meu tio por parte de mãe e sua mãe é minha tia por
parte de pai. Assim, considero que seja meu "quase irmão". Na infância em São
Paulo, éramos muito próximos. Nossas famílias sempre faziam atividades de lazer
juntas. Íamos ao sítio, à casa da vó, ao parque, fazer piquenique.
Tínhamos diversos apelidos. Fezô era o seu principal, o meu, Lezô. Fezô me
ensinou muitas coisas sobre brincadeiras, estudos, computadores, jogos. Foi com
ele que aprendi a jogar xadrez. Ainda me lembro da primeira partida. Lógico, ele
ganhou! E, no final, perguntei por que não comeu o meu rei. Ele disse que não se
come o rei do adversário. É elegante que o próprio perdedor derrube o seu rei e
guarde todas as peças do jogo. E assim o fiz.
Passaram-se anos e muitos jogos de xadrez. Jamais ganhava um sequer. Quando
completei dez anos, minha família teve que se mudar para Porto Alegre, por causa
do trabalho de meu pai. Assim, apesar de continuarmos nos falando, perdemos aquele
contato intenso que tínhamos e, não por nossa vontade, acabamos nos afastando um
pouco.
Fui levando a minha vida em Porto Alegre, enquanto percebia que não
compartilhávamos mais todas as novidades por causa da distância. Recebia
notícias de São Paulo de vez em quando, até que uma delas não me agradou muito.
Fezô estava com depressão, uma doença séria e muito perigosa. Mas, com quinze
anos, eu não entendia realmente quão séria e como essa doença é capaz de
transformar as pessoas.
Um ano depois, fui tirar minhas férias em São Paulo. Conversamos, passeamos, nos
divertimos e, lógico, jogamos xadrez. O jogo mais intenso que fizemos até hoje.
Demoramos horas. Foi quando percebi: estava prestes a dar o meu primeiro
cheque-mate nele! Seria real? Eu estava certo mesmo? Cheque-mate? Verifiquei
todas as possibilidades de jogo. Todos os movimentos que ele poderia fazer após
a minha jogada. Sim, era isso mesmo! Eu iria ganhar dele! Olhei sério para o
tabuleiro e fiz a jogada. Olhei para ele.
- Cheque-mate! - murmurei, ainda com voz de incerteza.
Ele se concentrou ao tabuleiro e ficou alguns minutos refletindo. Então olhou
pra mim com uma expressão que me pareceu ser um sorriso. Primeiro pensei ser um
sorriso de orgulho por eu ter finalmente conseguido. Eu estaria superando meu
próprio mestre. Mas logo achei que era um sorriso irônico, pois ele devia ter
encontrado uma saída. Não podia ser! Onde estava a saída? Eu achei que tinha
pensado em todas as possibilidades! Onde? Notei que ele ia me falar.
- Olha só, Lezô - disse pausadamente, me dando ainda mais agonia -, me diz uma
coisa.
Foi, então, que veio a frase mais surpreendente que eu jamais poderia esperar.
- Qual é o sentido da vida?
Como assim? Ele não ia falar do jogo? Que diabos de pergunta era aquela? Não
entendi nada naquele momento, mas, olhando pra ele, percebi que realmente estava
esperando uma resposta. Sim, eu precisava responder. Mas o que um garoto com
dezesseis anos sabe sobre filosofia de vida? Ele não podia estar fazendo isso
comigo! Comecei a me dar conta de que a depressão realmente era muito mais séria
do que eu podia imaginar. A verdade é que meu pensamento vagava por diversas
coisas, menos na resposta àquela pergunta. Não queria deixá-lo sem essa
resposta, mas a minha mente já não conseguia formular mais nada.
Não podia acreditar naquilo. Ele tinha mesmo virado a situação do jogo. Como um
bom perdedor, derrubei o meu rei do tabuleiro e comecei a guardar as peças. O
silêncio ensurdecedor de olhares soltos e pensamentos intensos foi interrompido
pelo barulho do tabuleiro se fechando. Um som grave, oco.
Depois daquelas minhas férias, diminuiu ainda mais a frequência com que nos
víamos. E nas poucas vezes em que isso acontecia, sempre quis dar aquela
resposta, mas na verdade eu nunca a tinha. Fui sabendo que a doença estava
piorando e que ele já havia experimentado algumas vezes a vontade de morrer.
Queria muito ajudá-lo, mas a nossa falta de contato, a distância e a minha
ignorância em saber ajudar impediam que isso se concretizasse.
Foi então que um dia, chegando em casa, vi minha mãe sentada séria no sofá. Eu
já sabia o que era. Não quis esperar ela terminar de contar e fui correndo para
o meu quarto afogar toda a tristeza que eu sentia naquele momento. Quão forte
pode ser uma doença capaz de fazer com que alguém queira tirar a própria
vida? Tão forte é que contagia e adoece todos que estão a sua volta.
No velório, olhei pela última vez o seu rosto. Ele estava deitado naquele imenso
caixão fúnebre, duro como o rei guardado na caixa do tabuleiro. Sim, este jogo
havia acabado para ele. Mais uma vez, o silêncio ensurdecedor de olhares soltos e
pensamentos intensos foi interrompido, agora pelo som do caixão se fechando. Um
som grave, oco.
Ajudei a levar seu caixão até a sepultura. Foi o momento mais doloroso. O peso
de carregar meu irmão nos braços era como um elefante de chumbo. Minhas
pernas tremiam e andavam sem eu pensar em fazê-lo. Meu coração pesava tanto
quanto o caixão. A mão suada parecia que poderia deixá-lo cair, como se o peso
já não bastasse. A garganta parecia presa, como se houvesse uma corda dando um
nó em volta dela, e eu mal conseguia engolir meus soluços. As lágrimas
encharcaram a minha cara e eu não era capaz de ver onde daria o próximo passo.
No final do enterro, pouco antes de o seu caixão desaparecer por completo,
finalmente me dei conta. Durou o mesmo tempo da quebra do silêncio das duas
caixas para eu dar a ele o que me pedira.
- Fezô! - sussurrei em direção à cova - O sentido da vida é exatamente dar
sentido a ela.
Foi então que minhas pernas pararam de tremer, minha mão secou, minha garganta
se soltou e o meu coração foi ficando leve. Minha alma parecia estar saltando de
meu corpo, como se estivesse com vontade de flutuar. Senti um arrepio
confortável e entendi que a vida dele fez muito sentido para mim.
Leandro Vinícius Bersch Ferreira
Graduando em Administração UFRGS
Graduando em Administração UFRGS
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNão sou crítico em literatura, mas gostei bestante do texto. Parabéns ao autor.
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