Retórica: Metalinguagem e Intertexto

Assumindo-se a retórica como o efeito da forma sobre o conteúdo, como proposto por COSTA (2011), a discussão sobre se o conteúdo de um discurso é verdadeiro ou não perde força, deslocando o eixo para o papel dos operadores retóricos. Considerando-se o efeito da forma sobre o conteúdo, é possível assumir a metalinguagem -- fazer x a partir de x’ -- como um operador retórico. Entretanto, como há diferentes graus retóricos e diferentes tipos de metalinguagem, falarei sobre a metalinguagem presente na arte e na literatura, por ser o grau retórico maior nestas modalidades.
Samira Chalhub, em A Metalinguagem, aborda exatamente esta modalidade.
Partindo-se das “equações” abaixo:
A=B
linguagem a = linguagem b
Chalhub explica que (…) a linguagem da linguagem (…) é metalinguagem – uma “leitura” relacional, isto é, mantém relações de pertença porque implica sistemas de signos de um mesmo conjunto onde as referências apontam para si próprias, e permite, também, estruturar explicativamente a descrição de um objeto. A extensão do conceito de metalinguagem liga-se, portanto, à ideia de leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de signos, de linguagem (p.08).
Assim se colocarmos um espelho na frente do outro, a imagem irá se repetir infinitamente, constituindo um exemplo deste processo. Pode-se fazer metalinguagem através da tradução de um conceito, da interpretação, da definição de uma “coisa” ou através da tradução de estruturas de significação.
Will Eisner faz uso magistral desse operador retórico com peso na tradução de estruturas de significação,  fazendo com que o desenho passe as emoções presentes de forma mais intensa. No livro A Vida na Cidade Grande, Eisner transmite com sensibilidade minúcias do cotidiano de New York em quatro graphic novels.
A certa altura deste livro, Will Eisner afirma que o verdadeiro retrato de uma cidade está “nas frestas do seu chão e em torno dos menores pedaços da sua arquitetura” (…). Neil Gaiman
A Vida na Cidade Grande
Já na capa nos deparamos com três planos, por assim dizer, de metalinguagem – não que sejam os únicos –:
  • no terceiro plano temos transeuntes atravessando a rua apressados. A quantidade de pessoas e suas posturas nos remetem ao panorama da metrópole;
  • no segundo plano temos Eisner desenhando as pessoas atravessando a rua;
  • no primeiro plano, apesar de já não estar desenhado, temos Eisner desenhando ele mesmo enquanto desenha as pessoas atravessando a rua.
Esta capa constitui o sobrescrever, no qual é mostrado o que se está tratando.
Quando o texto não apenas diz, mas opera metalinguísticamente, temos não só o tema, mas o tema estruturado na feitura do texto, de tal forma que fica impossível separar o procedimento do que se diz.(CHALHUB, 1986, p. 63)
Fonte: A Vida na Cidade Grande
Nesta imagem, vemos a cidade refletida na aguá empoçada de um respiradouro do metrô, sendo essa mesma cidade refletida, a cidade que mais abaixo aparece com um de seus respiradouros.
A Vida na Cidade Grande
Na imagem acima, há outro exemplo de processo metalinguístico, no qual o passageiro do metrô, através da janela, acompanha o desenrolar do encontro amoroso no apartamento pelo qual passa. Há correspondência entre cada quadro que o passageiro vê e um filme analógico.
Estes três exemplos não possibilitam a percepção da beleza do trabalho de Eisner ao retratar a cidade de New York, mas possibilita a ilustração de algumas formas de fazer metalinguagem.
Outra forma de se fazer metalinguagem é a intertextualidade – uma forma de metalinguagem, onde se toma como referência uma linguagem anterior  (CHALHUB, 1986, p.52). Sandman, de Neil Gaiman, é um ótimo exemplo tanto de metalinguagem em geral quanto de intertextualidade.
No capítulo 19, Sonho de Uma Noite de Verão, por exemplo, Shakespeare e sua equipe de teatro se tornam personagens de sua própria história. Em um dos capítulos anteriores de Sandman, Sandman encontra Shakespeare, um jovem aspirante a poeta, mas a quem falta inspiração. Diante disto, The Dream Lord (Sandman) propõe ao bardo um trato, segundo o qual lhe daria sonhos em troca de apresentação de duas peças para amigos seus. Shakespeare aceita e prepara a apresentação da primeira peça. Os espectadores desta serão aqueles que inspiraram a criação dos personagens da peça homônima.
The Sandman
Mais vez, encontramos um espelho na frente de um espelho, pois a história que Shakespeare conta é a história daqueles que assistem à peça, ao mesmo tempo em que isto se desenrola na história da qual todos são personagens. O duende que aparece na imagem acima encanta o ator que o interpreta e rouba a cena, aumentando o nível de interação entre eles. É sobre isto que Puck fala na imagem a seguir:
The Sandman
Até um dos filhos de Shakespeare se mistura ao grupo, sendo a distância de Shakespeare causada pelos sonhos e a morte deste filho insinuadas como mote para a criação de Hamlet.
Outro meio pelo qual se expressa a metalinguagem nesta obra está presente na fala das personagens, não apenas na estrutura sintática e no léxico como no desenho das letras. Na imagem abaixo, para exemplificar, Ordem e Caos estão planejando o que fazer em relação a Sandman ser o novo senhor do Inferno:
The Sandman
Eisner, em seus cursos e livros sobre Histórias em Quadrinhos, fala e explica a importância que esse recurso representa para a significação.
Outra forma de metalinguagem é o metaromance, no qual o fazer um romance se torna, por assim dizer, personagem. É o que Clarisse Lispector fez em A Hora da Estrela. Nesta novela há duas narrativas. Rodrigo  S.M. narra seu trabalho de narrar a história de Macabéa. Entretanto, deixarei A Hora da Estrela para um outro post.
O que foi demonstrado aqui é um pouco da abragência desse operador retórico, pois há muito mais formas de metalinguagem do que as aqui expostas. O mais importante é frisar o poder relacional que esta apresenta e o papel que isto deve desempenhar. Para a literatura, e a arte em geral, o principal não é causar a sensação de conforto através do reconhecimento, mas o desconforto  da desconstrução através da relação para criação de novo significado, enfim, aquele efeito chamado estranhamento.
E paro por aqui, antes que fique mais chata que gilete (Rita Lee).

Referências
CHALHUB, Samira. A Metalinguagem. São Paulo: Editora Ática, 1986.
EISNER, Will. A Vida na Cidade Grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GAIMAN, Neil. Sandman: Edição definitiva. Vol.01. São Paulo: Panini Books, 2010.
___________. Sandman: The Absolute. Vol. 02. New York: DC Comics, 2007.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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