Três ou quatro sílabas manhosas
dissimulam-se obstinadas.
Graciliano Ramos
No livro Infância, de Graciliano Ramos, o narrador em primeira pessoa reflete acerca de emoções e sentimentos tanto recordados quanto formados no fluxo da fala, através de um trabalho particularmente metalinguístico. A linguagem dá forma ao estado vacante e ao distanciamento reflexivo das lembranças e das relações afetivas expressas.
É, em geral, uma linguagem forte, mas não-agressiva; o tom empregado é antes o de um desabafar reflexivo do que de uma reflexão confessional. O labor linguístico verifica-se na descrição de fatos e personagens, a partir da qual chegamos à reflexão do narrador sobre os eventos passados, sobretudo em seu núcleo familiar; pela descrição, ele cria e recria suas perspectivas.
A breve análise que segue centrou-se no primeiro capítulo do livro de memórias, sendo, como este, um recorte de linguagem.
O uso da reflexão (meta)linguística para traduzir lembranças ou descrever sensações ganha diferentes contornos na obra: “e sons estranhos também surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas nada mais” (p. 7). As lembranças exploradas são em sua maioria objetivadas e difusas, também explícitas, mas raramente representadas.
O tempo presente do narrador, assim, é escondido atrás de julgamentos e vagas aparições: “(...) e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem (...)”, “(...) não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela (...)”, “(...) percebi muitas caras, palavras insensatas” (julgamento) (p. 6).
O tempo presente do narrador, assim, é escondido atrás de julgamentos e vagas aparições: “(...) e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem (...)”, “(...) não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela (...)”, “(...) percebi muitas caras, palavras insensatas” (julgamento) (p. 6).
Dessa forma, a linguagem que caracteriza o narrador, no presente de sua escrita, dirige-se por estruturas tais como: “(não) me faz supor que”, “posso imaginar”, “creio que”, “lembro-me (perfeitamente)”, “Tudo é bem (nítido)”, “que me parecem hoje como”, “julgo que”, “revejo (pedaços)”, “ressurgem”, “vêm, fogem, tornam a voltar”, “tento arredá-las, pensar”, “me perseguem”, “adquirem sentido”, “vejo que”, “lembro-me de”, “que experimento e abandono”, “procuro (desviar as idéias)”, “se insinua no meu espírito”, “arrasta-me”, “aparecem”, “instiga-me a”, “vacilo um minuto, buscando”, “persuado-me”, ‘repete-se”, “esqueci o resto, e não consigo adivinhar”, “não chego a reconstituí-las”, “sei que”, entre outras que me escaparam à vista.
Para uma contextualização, alguns trechos da obra:
“Zangava-se ouvindo alguém afastar-se da sua prosódia curiosa. Suponho que nunca houve outra igual. A sintaxe e o vocabulário também diferiam bastante do que usamos comumente. Nessa linguagem capenga, D. Maria matracava um longo romance de quatro volumes (...)” (p. 10).
“Se não me engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. (...)”, “O hábito de corrigir a língua falada instiga-me a consertar o primeiro verso (…) (p.11).
O modo de recordação em questão é objetivado - isto é, resulta de um ato distanciado e reflexivo -, ao mesmo tempo em que apresenta traços linguísticos de difusão: “se eu não me engano”.
Na passagem “Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga (...) uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...)” (p. 10), temos um limiar entre o modo de recordação objetivado e o explícito, ou seja, a linguagem é utilizada de um modo claro e preciso em relação aos fatos retratados, ao passo que um distanciamento em relação ao material descrito é visível.
Se pensarmos o contexto narrativo de aparecimento da metalinguagem, observamos, então, sua forte relação com a representação da família (pais, avós, irmãs) e do amigo José Baía. Já no início do livro de memórias, nos deparamos com: “Chamava-se José Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopéias e gargalhadas sonoras” (p. 7).
A linguagem mais reflexiva é utilizada para recordar as cantigas, as brincadeiras de linguagem, a linguagem alheia, a relação entre o narrador e seu entorno, se dando, dessa forma, de maneira bastante sentenciosa, ao valer-se de juízos de valor. É uma linguagem contextualizada, olhada de fora, corrigida, denunciadora, observadora.
É acessível a nós a informação de que a linguagem foi algo sempre presente na história do narrador-autor (em todos os sentidos possíveis), cuja aquisição formal, embora tardia, foi de extrema importância em termos de intercâmbio de ideias, emoções e recordações. No final do capítulo, o narrador se revela claramente. Sabemos que há diferenças sutis de representação de memória e uso da linguagem entre descrever a sensação, recordar a sensação da emoção, reconhecer tal recordação, refletir sobre a sensação, julgar o que sentiu, recordar os julgamentos. Parece que, mesmo sutilmente, todos estes estágios podem ser vislumbrados no texto.
Há termos e relações marcadamente idiossincráticos: “laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam”, “a que a experiência deu o nome de porta”, “inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro. Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto”, “mais vivo que todos, avulta um rapagão”, “Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio”.
Há, como podemos inferir, um stream of consciousness em forma de linguagem e de memória de linguagem.
Ao final do capítulo, lemos “a história finda assim, furiosamente (...)”, seguindo-se de uma reflexão que, em um jogo de linguagem, destaca o contraste: “Ouvindo a modesta epopéia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade”, culminando com uma confissão memorialística: “é necessário vê-los à distância, modificados.”
À distância, após tais observações, nos inclinamos a dizer que toda a linguagem parece, em certa medida, ser um pouco de recordação.
Referências
RAMOS, Graciliano. Infância. 17a. edição. Rio, Record, 1981. Digital Source: http://www.4shared.com/.
obs: texto adaptado de texto entregue para disciplina na Faculdade de Letras.
obs: texto adaptado de texto entregue para disciplina na Faculdade de Letras.
Comentários
Postar um comentário