Árvores Mágicas

eucalipto
Não queria ir, mas ninguém podia me cuidar. Tive que acordar cedo e suportar o café que meu pai empurrou em mim. Também não queria levar lanche pronto, já que ninguém mais iria fazer isso, mas minha mãe não me deu bola, me deu bolo. De chocolate, é certo, mas seria a única a levar merendinha. Tão pouco queria passar protetor, era coisa fresca demais, mas meus pais não entendiam. Para fechar essa primeira parte da tortura chamada passeio escolar, eles me deixaram na escola e não arredaram pé antes de o ônibus ter partido. Obrigada a ouvir piadas e musiquinhas o caminho inteiro. Sentei sozinha e roubaram o bolo. Finge não ligar, mas queria voltar.
De tanto fingir que dormia quase dormi e por pouco não percebi que estávamos em lugar nenhum. Sentia um cheiro vago de pasta de dente. Fiquei em pé com a cabeça perto da janela. Assim como pasta de dente, o ar que vinha em minha direção era fresco. Observei a floresta que se revelava tímida à civilização não tão civilizada que chegava. A algazarra dentro do ônibus era tanta que ninguém percebeu os pássaros planando e certamente cantando nos arredores das árvores. Pela primeira vez o show era para mim e não eu. Mas tortura é tortura e maior é a psicológica. Me trancaram no banheiro do ônibus, dizendo que eu me machucaria e nenhum responsável percebeu minha ausência. Meus pais se enganaram. Ali, também não podiam me cuidar.
Quem me socorreu foi o motorista ao ver o aviso de banheiro ocupado no painel. Assim que desci do ônibus ouvi o chilrear de pássaros. Alguns comiam meu bolo de chocolate. Por alguma razão (se é que se chama isso de razão) sorri apenas para a responsável me xingar por me trancar no banheiro. Eu era manhosa demais. Graças aos meus pais.
Corremos para alcançar os outros e seguir a trilha para ouvir as explicações do guia sobre o lugar. Tudo o que precisa estava a minha volta ao alcance de meus sentidos. Ali o cheiro de pasta de dente era mais intenso, porém não sabia identificar de onde vinha. Com certeza não era do guia. Por ser medrosa, fui colocada a seu lado e pude desejar-lhe creme dental.
Entre as árvores, o cheiro de terra úmida se confundia com o das plantas. Ouvi o canto de bem-te-vis, único pássaro que eu conhecia. Os outros eram músicas completamente novas. De tempos em tempos soava um ronco forte e meio abafado que me lembrava um rosnar ao mesmo tempo que barulho de chuveiro, misturado ao bater de asas de aves. O grito era de bugios. Queria vê-los, mas não me deixaram.
Eu havia me abaixado para ver de perto um gafanhoto verde e marrom, achando ser dele o estrilar, quando um dos meus algozes — vulgo colegas de turma — me empurrou. Caí deitada numa poça de lama. Afinal, grilos estrilam e pulam nos distraídos.
Sob risos, fomos reunidos para o almoço. Por instinto, mantive distância. Apesar de todo o ar e espaço disponível, me  sentia sufocada. Quando abri minha mochila, descobri o lanche reserva que minha mãe havia preparado.
Peguei um graveto e atirei numa moita de flores amarelo claro que se revelaram panapaná. Jamais tinha visto tantas borboletas. A dança iniciada seguia por entre as árvores. Olhei o grupo e senti o cheiro de refrigerante; olhei o panapaná e senti a liberdade.
Na escolha do caminho, aceitei como guia o cheiro de pasta de dente. Cheguei a um lugar de árvores altas, folhas compridas e pontudas, responsáveis pelo cheiro que me chamava desde a chegada. Para minha surpresa, isso não era nada se comparado aos troncos. Cinzas e alguns brancos. Corri e abracei um. Encostei meu rosto na superfície fria e lisa. Fiquei ali, ser único com o eucalipto. Soltei os braços e caí de costas sobre gravetos e folhas, tão numerosas eram que o tombo foi macio. Espalmei as mãos e contraí os dedos. A umidade por baixo contrastava com a sequidão da superfície. Repeti o gesto até sentir terra embaixo das unhas. Elevei as mãos à frente do rosto e analisei o resultado.
Me sentei e olhei a volta, as cores emavam intensidade e paz de forma mágica. Em meio aquela luz, vi uma senhora de cabelo grisalhos como os troncos da árvore, mas durou só um segundo. No instante seguinte, somente as árvores e eu estávamos ali. Pulei e sabia exatamente o que fazer. Passei meus braços em torno do tronco cinza, liso e fresco e desejei ter um amigo. Novamente deitei no chão puxando as folhas para cima de mim, aproveitando o cheiro de eucalipto. Sorri e adormeci entre os troncos cinza.
Um abraço acolhedor e protetor me despertou. Meu pai estava me colocando no banco de trás do carro. O que pareceu para mim ser poucos minutos, para a turma da escola foram duas horas de procura. Quem me encontrou foi uma senhora que estava colhendo folhas de eucalipto cheiroso. Minha mãe passou a mão pela minha cabeça depois de longos e aliviados abraços. Eu esperava o sermão pelo que havia feito, entretanto de alguma forma naquele momento eles sabiam exatamente por que eu tinha me afastado.
Meus pais resolveram parar numa lanchonete. Começei a comer meu lanche, mas parei logo na primeira dentada. Minha família me olhava de um jeito estranho, um misto de empatia com ansiedade. Lá vinha o papo.
-- Filha, nos temos uma notícia para te dar, uma ótima notícia – afastei por inteiro o lanche da boca. – Anginho, nos te amamos muito e tu nos deu um baita susto. Não faça mais isso, por favor.
-- Isso não é boa notícia.
-- Te amarmos não é bom? – perguntou meu pai.
-- Não é coisa nova. Eu já sei disso.
Um olhar esquisito foi trocado entre eles mais uma vez, certamente não era só isso a ser dito.
-- Benzinho, tu vai ter um irmãozinho ou irmãzinha.
Soltei o lanche e enchi meu peito de ar. Não podia acreditar. As árvores eram realmente mágicas e seu cheiro de pasta de dente ainda estava presente.

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