Não dirás bobagens

Este texto foi escrito pelo Prof. Dr. Gilberto Scarton e resolvi transcrevê-lo aqui, pois mais uma vez tive que ouvir o comentário preconceituoso de um leigo na área. Linguística não é blábláblá, blábláblá é reality show (com Bs) e horário político.

Como já ouvi outros dizerem, não exatamente com as mesmas palavras, Linguística é a ciência mais f#@! da história, só por que todos falam, acreditam que tem base científica para fazer certas alegações sobre a linguagem, em sua maioria preconceituosas e equivocadas.


  1. Não dirás que cruzar com gato preto dá azar na certa, pois eles não são bruxos travestidas de inocentes animais. Nem aconselharás a alguém a fazer pedidos à vista de estrela cadente: só exclame um "oh!" de espanto, de admiração...
  2. Não dirás que espatifar um espelho ou (ad)mirar-se em espelho quebrado, à moda de Narciso, é pior do que passar por debaixo de escada: são sete anos de má sorte... Isso é bobagem!
  3. Não dirás que não sabes português, pois alguém poderá considerá-lo um idiota, que declara que não sabe uma língua falando aquela língua. Absurdo, né?
  4. Não dirás que a língua portuguesa é uma língua difícil, uma das difíceis, pois alguém poderá espantar-se acreditando que você só começou a falar aos dez anos, ao passo que um índio tupi-guarani, aos dois aninhos, já aprendeu, já sabe, já domina um monte de coisas de sua língua. (Poupa-te de dar vexame!!)
  5. Não dirás que a língua portuguesa está decadente... que está se corrompendo... que está sendo, aleijada, mutilada, conspurcada. Se assim fosse, poderia se dizer que a língua de Camões, de Machado, de Drummond é uma língua estropiada, fruto que é da evolução do latim falado por gente das camadas menos privilegiadas. As línguas simplesmente evoluem...
  6. Não dirás que uma língua ou modalidade linguística é melhor, mais rica, mais expressiva do que outra, pois todas elas são sistemas perfeitos de expressão, ferramentas que são para as pessoas se entenderem, se comunicarem.
  7. Não dirás, por isso, que o português da gente simples, da gente humilde é um português horroroso (ororozu), pois, ao te expressares assim, estarás expressando tua ignorância, ao desconheceres que uma língua é um instrumento de comunicação e não de discriminação. E  que, se nós, os bonitos, falássemos daquele jeito, essa seria a "melhor" linguagem.
  8. Não dirás que as gramáticas são infalíveis. Nem dirá isso dos dicionários. Dirás, antes, que os utentes de uma língua ou modalidade é são infalíveis, uma vez que são condôminos, senhores absolutos da língua, cabendo aos gramáticos e dicionaristas apenas o seu registro. (Não queira, portanto, colocar o carro na frente dos bois, pensando que vem antes o dicionário e a gramática e depois os usos, a língua viva).
  9. Não dirás que em linguagem vale tudo, que não existe o certo e o errado. Dirás, antes, que em linguagem vale tudo o que tiver aceitabilidade contextualizada, o que estiver de acordo com o contexto, o que se adequar ao ouvinte, ao assunto, ao propósito do ato comunicativo, ao lugar em que ocorre a comunicação.
  10. Não dirás que o estudo intencional da gramática é (muito) importante para se escreverem bons textos, pois, se assim fosse, Camões não teria escrito "Os Lusíadas" naquela época (em que não existiam gramáticas).
  11. Não...
E como ele costuma dizer: E durma-se com um barulho desses!

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