AmEnte saudosista de CAUSOS incontados...



Que saudade dos causos.. das rodas de chimarrão e do fogo de chão.. que saudade dos velhos sorridentes a matear com a piazada cansada no cair da noite. Que saudade dos netos antes barulhentos, agora silenciosos, à espreita de uma história cumprida e faceira, de um bicho por sair de trás do mato ou de um sussurro mais forte da madrugada. Ah, que saudade do que nunca tive.

Às vezes, ao ler tantas notícias e análises, se sente saudade de um pouco de verdade meio pura, crua. Daquilo do que alguém disse sem ser doutor, daquilo que alguém jurou que viu e até ‘apavorou’. Às vezes, ao ler tantas notícias e análises, dá uma saudade de ter visto mais do que se viu, de saber algo de verdade e não de desconfiado. Às vezes, bate uma saudade daquela fala despreocupada, sossegada, dissimulada, que te pega e te enreda na própria palavra, e ainda sai dando risada.

Histórias de emocionar boa gente e de fazer pensante pensar saem das paragens de muitas memórias, histórias que originam teses e dissertações.

Um dia, ele acordou e viu aquela vaca tentando parir o bezerro, mas tava difícil, as patas traseiras já para fora, e a vaca mugia e rolava no pasto e não conseguia que o bichinho saísse. Vendo aquele sofrimento todo, ele disparou para avisar o moço que cuidava dos bois, mas este nem muita bola deu, não estava no seu dia. Foi então que o apavorado disse que ia chamar ele mesmo o dono da vaca, e, assim, parece que o moço resolveu trabalhar. Correram em busca de ajuda. Na conta, eram quatro os que largaram em disparada para tentar trazer o bezerro ao mundo. A vaca era das bravas, tiveram que amarrá-la para depois passar ao trabalho mais difícil. Já imobilizada pelas cordas e pela dor da situação, eles puxaram, puxaram e o animalzinho saiu. O mais experiente, já montado na árvore, disse para o mais jovem soltar as amarras da vaca e subir na árvore também, ela estava fraca mas ainda era muito arisca, e, no fim das contas, bicho é bicho. O mais impressionante na cena toda era algo que não estava ali no desenrolar do ato principal, era algo que estava na figuração, que, ao ser notado, foi mais do que notado. Os bois, vacas e bezerros que cobriam a pastagem, todos, naquele momento, estavam de pé, fitando o caso, enfileirados. Para o apavorado, era como um batalhão à espera da ordem, nunca tinha visto aquilo e até arrepiou pelo que se seguiu. O bezerro estava tonto, como o natural, e ali ficou enquanto a vaca o lambia e lambia; então, ele, cambaleante, levantou. Os bois, naquela posição, começaram a marcha. O último boi da última fila se destacava da manada e ia cheirar o bezerro que tardou para chegar. E, assim, sucedeu, do último ao primeiro. Cada um, disciplinadamente, seguia o trajeto do antecessor. Após cheirar e lamber o bezerrinho, o boi ou a vaca seguia para o pasto normalmente, rotineiramente. Aquele ritual deixou o apavorado meio tonto, como eram capazes de algo daquele tipo? A situação tinha sido realmente tensa e exigia atenção e cuidado com os dois animais, mas aquilo era, era, era... apavorante. Restou a ele tirar o chapéu e seguir para casa, ansioso para ver se lá alguém o aguardava com um pouco de chimarrão e um afago companheiro.

O apavorado narra o acontecido até hoje e esfrega o olho ao dizer que as pessoas é que não sabem ver a inteligência dos bichos. 'Tem muito bicho mais sabido que gente, tem muita gente mais animal que bicho', conclui, sorridente, com um mate domingueiro por entre as mãos.


Imagem: © LEONID STRELIAEV/ EDITORA LETRAS BRASILEIRAS/DIVULGAÇÃO
http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/a_ficcao_do_sul_profundo_imprimir.html

Comentários

  1. Que bonito.
    Ah, eu sempre passo por aqui.
    beijos, gurias.
    Kamila Ail.

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  2. Obrigada pelo comentário tão incentivador, Kamila : ) "Palavras pequenas, palavras.."... "Bonito" é um adjetivo tão bonito, que muito me alegra ser referido ao texto!

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