Eu só conhecia a estância por fotos. Na minha cabeça de criança de oito anos, parecia o jardim secreto. Grande, cheio de flores e promessas de fantasias. O lugar perfeito para criar meu próprio mundo e correr até o cansaço, mas ao mesmo tempo, como toda boa guria de apartamento, sentia receio de todo aquele espaço. Tudo o que sabia eram suposições criadas a partir de fotos. O meu tio-avô, proprietário da estância me parecia muito estranho. Em algumas fotos ele aparecia feliz, sorrindo e fazendo maquetes ― eram incríveis ― e em outras, sério como se uma nuvem negra pairasse sobre ele. Não era uma nuvem que eu associava a tristeza, mas a maldade.
Minha mãe idolatrava esse tio. Ele mandava uma maquete por ano para ela. Cada ano um cenário novo. Era esse sentimento que nos levaria a estância naquele verão. O tio-avô estava doente. É claro que naquela época essa parte foi omitida, como tantas outras que pareço fadada a descobrir ao poucos. Fizemos a viagem de carro, saímos antes do meio-dia. Brinquei o tempo todo no banco traseiro, imaginando mil e cinco histórias de aventura. Em todas eu era uma heroína aventureira.
Depois de sete horas e muitos ‘já chegamos’, a paisagem se tornou dominada por áreas grandes de vegetação rasteira e áreas cheias de árvores. As casas se tornavam cada vez mais escassas. A sensação de isolamento e suspense era criada e fortalecida pelo lusco-fusco do pôr do sol. O acesso à estância era por uma estradinha de chão batido, em mal estado, ladeada por árvores. Pelo outro lado o único meio de acesso seria de barco, seguido de escalada de uma escarpa. Escarpa é claro do ponto de vista de alguém de oito anos. Enfim, um lugar isolado.
A casa senhorial reinava o centro da área destinada à habitação. Ela era grande, de paredes brancas, telhado de telha de barro, janelas e portas de madeira pintada de verde. Ao redor da casa havia uma varanda, a partir da qual se acessava a porta da frente da casa. Os pés de jasmim estavam espalhados pelo jardim bem cuidado. O cheiro de suas flores concedia a cena o clima ideal para piquenique com suco de uva e bolo de coco.
Eu tinha estancado ao lado da porta do carro, encantada. Porém o encanto foi se esvanecendo conforme eu dirigia o olhar para a direita da casa. À direita, havia uma grande e familiar figueira com ar tristonho e mais à direita a nuvem negra materializada em um galpão de madeira escura, que mesmo de longe parecia ser maior que o apartamento onde vivíamos.
Com um puxão acidental minha mãe me tirou do transe e me levou em direção à casa. A figura sombria e sorridente de meu tio-avô esperava cambaleante à porta. Minha mãe o ajudou a se apoiar e o recriminou por ter se levantado.
― Como eu poderia deixar de receber minha bonequinha depois de tantos anos longe ― falou com voz suave enquanto dava uma beliscada na bochecha de minha mãe. ― Então, me deixa ver a flor que tu trouxe a esse mundo e a esse fim de mundo aqui. ―Com mãos que mais se pareciam com garras, ele me segurou a sua frente por ambos os braços, com olhar frio me perscrutou ao mesmo em que sorria simpaticamente. Meu pai pôs suas mãos grandes e calorosas em meus ombros e se gabou do meu talento para desenhar. Naquele momento meu pai me pareceu o herói. Eu não gostava do tio de minha mãe, nem um pouco.
Da cozinha veio uma voz feminina, alta e alegre, além do cheiro de galinha assada e batata doce. Em seguida surgiu uma senhora de cabelo grisalho e pele morena com um pano de prato no ombro. Ela abraçou a todos bem apertado, a despeito de só conhecer minha mãe. Ela guiou a gente para a cozinha onde jantamos. Eu comi de joelhos sobre a cadeira e usando praticamente só as mãos. Meu pai não fez e nem disse nada, minha mãe me chamou a atenção no começo, mas Filó, a senhora do pano de prato, mandou que me deixassem comer como eu quisesse, já o meu tio ia do senhor gentil e amável com minha mão ao senhor observador e indiferente comigo e com meu pai. Contudo, ninguém mais parecia notar isso além de mim.
No dia seguinte, eu acordei mais tarde do que de costume e brindada com um dia ensolarado e perfume de jasmins. Sai correndo do quarto e me deparei com uma casa sombria com meu tio estranho com as mãos cruzadas atrás do corpo me olhando de soslaio. Engoli em seco e segui em direção ao cheiro de pão de cabeça baixa e as mãos cruzadas sobre o ventre.
Passei o dia correndo pelo jardim e sempre sem me afastar da Filó, pois me sentia observada e ameaçada pela sombra do tio de minha mãe. Ela ficava cuidando e conversando com o tio, enquanto meu pai tentava ajudar a manter em ordem o lugar.
Na segunda noite, eu me afastei de meus pais para pedir a Filó mais carvão para desenhar ― tinha desenvolvido verdadeira adoração pela sujeira que ele causava. Como a casa era grande e a mantinham na semi-claridade, acabei entrando em outro corredor que me levou a uma parte ainda mais escura. O fato da claridade esparsa de relâmpagos iluminar o caminho não me deixava mais a vontade. Foi entre a escuridão entre um relâmpago e outro que eu acabei encontrando o tio. Num relâmpago o caminho estava vazio, no outro meu tio de garras e olhos sombrios e opacos estava parado a minha frente me encarando.
― Não é hora de criança ficar brincando por aí ― ele deu um passo em minha direção e eu mais quatro para trás.
― Desculpa...
Uma luz foi acesa e Filó apareceu segurando um copo de leite quente. Ela me pegou pela mão e perguntou ao meu tio se ele desejava mais alguma coisa. Ele declinou, se virou e sumiu novamente entre um relâmpago e outro em um corredor escuro. Naquela noite eu não consegui dormir. Tinha impressão de ouvir passos o tempo todo.
Depois do terceiro dia, o meu jardim secreto se transformou em um bucólico tédio. Pela primeira vez eu decidi ir até a figueira. Quando cheguei perto, percebi que havia um menino da minha idade acocado entre as raízes.
O menino se encolheu ao me ver. Ele tinha marcas escuras em torno dos punhos e olheiras profundas entristecendo ainda mais seu olhar. Eu disse oi, mas não recebi nenhuma resposta. Me balancei sobre os calcanhares e, estendendo o ioiô que trazia no bolso do macacão vermelho, perguntei se ele sabia jogar. Ele olhou o ioiô psicodélico e aquiesceu. Ele estendeu a mão sorrindo e disse que era mestre.
Durante as nossas brincadeiras ao longo da tarde, ele me contou que morava ali. Que ele havia sido abandonada pela mãe e que nunca soube quem era seu pai. Desde que se lembrava, Filó foi sempre a pessoa que cuidou dele, ainda que brigasse bastante quando demorava a realizar suas tarefas. Entre conversas e brincadeiras, a tarde chegava ao seu fim. Quando ele percebeu isso, pareceu ficar ansioso e assustado. Ele quis devolver o ioiô, mas eu disse que podia ficar com ele. Sem dizer nada, o menino saiu correndo em direção ao galpão. Antes de fechar a porta, ele olhou em volta e me encarou com tristeza.
Eu fiquei receosa pela sua atitude e resolvi ir falar com ele, mas antes que eu abrisse a porta do galpão, Filó apareceu.
― O que tu está fazendo aí? Não é lugar para criança brincar.
Eu contei sobre o menino e descrevi a aparência dele. Conforme mais eu falava, mais pálida, Filó ficava. Ela respirou fundo e entrou no galpão a procura do menino. Contudo, só encontramos meu ioiô perto de uma parede. Quando ela me abraçou para sairmos de lá, pude sentir o quanto ela tremia e quão geladas suas mãos haviam se tornado.
Nos sentamos a escada da varanda e ficamos em silêncio durante muito tempo. Somente quatro anos mais tarde, quando voltamos para o velório do tio de minha mãe, ousei tocar no assunto. Perguntei a Filó sobre o menino daquela tarde. Com olhos tristes e lacrimosos, ela me convidou para sentar a mesa da cozinha.
― Eu tinha 20 anos, não tinha muita paciência com ele. Era um menino alegre, matreiro e que deveria me ajudar a cuidar da casa. O que ele fazia sem reclamar, apesar de às vezes se amolar um pouco. Certo fim de tarde eu pedi que ele fosse buscar lenha no galpão. Ele começou a demorar demais para o meu gosto ― Filó falava com o olhar fixo no copo que girava nas mãos ―. Gritei por ele até me irritar e decidir ir atrás lhe dar um puxão de orelha ― Ela fungou e uma lágrima rolou o rosto ―. O galpão estava com a porta entreaberta. Chamei de novo e ele não respondeu. Entrei e encontrei a lamparina caída pouco depois. Chamei de novo, esperando que ele pulasse de algum lugar para me assustar ― os lábios de Filó começaram a tremer e ela usou o pano de prato para secar as lágrimas que surgiam ―. Tudo o que achei foi um pé da sandalinha que ele adorava com um pingo de sangue perto da parede onde também encontramos seu ioiô naquela tarde ―. Ela me olhou nos olhos e disse: ― procuramos durante um mês inteiro e nunca tivemos notícias sobre ele de novo.
Naquela noite não consegui dormir e depois dela não voltei a falar com Filó. Alguns anos mais tarde ela morreu. Também foi velada na estância e, naquele dia, a última visão que tive foi do galpão escuro ao lado da figueira. Nunca tive coragem de contar essa história para minha mãe e muito menos minhas suspeitas. Apesar de elas me assombrarem durante as décadas que se passaram até o enterro de minha mãe.
Agora que não mancharei a imagem que ela tinha de seu tio, convenci meu pai a demolir aquele galpão escuro. No dia em que o colocamos abaixo, descobrimos, atrás daquela parede perto da qual Filó encontrou a sandália de criança e o ioiô, uma passagem para uma sala subterrânea. Nesta sala havia uma mesa pequena, uma cadeira, uma cama com algemas na cabeceira e nos pés. As algemas prendiam apenas os ossos do menino desaparecido.
É estranho, pq ao começar a ler o conto, não sabemos do que se trata. O tipo de narrativa não nos mostra - pelo menos não achei isso - clarvamente se tratar de uma trama assim. Mas acho isso bom, pois a cada parágrafo, vamos nos surpreendendo...
ResponderExcluirEnfim, não é meu estilo de história preferida, bem longe disso...mas achei bem contada, bem escrita...
Um abraço...
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