UMA NOTÍCIA


A trivialização consciente

Uma discussão a mais via mídia para animar a vida. Esses dias, em uma rádio da capital, o debate se focou na polêmica trazida pelo trabalho de uma psicóloga cuja defesa era a de que os relacionamentos extraconjugais, no popular, as traições, eram, na verdade, para ser encarados como um estímulo positivo para o relacionamento do casal, não como um desestímulo.

Nem precisavam os argumentos aparecer, e a tese já tinha adeptos!

O argumento principal elencado na apresentação da discussão era de que os relacionamentos fora da relação não apresentavam o mesmo valor, ou seja, não se equiparavam ou sombreavam a relação primeira, de forma que esta se preservava, e mais, se fortalecia.

Posto o argumento, ele foi defendido!

Pensando sobre o argumento...

Na descrição de um objeto de teorização, elencamos muitas vezes, na pressa do momento, características de diversas ordens e, na explicação, igualmente trazemos argumentos de diferentes esferas, o que pode complicar a análise, tendo em vista que, na maioria das vezes, há elementos não-necessários ou não-mapeáveis envolvidos (cf. Metateoria das Interfaces, Costa). Trazer, assim, questões de ordem moral, religiosa, filosófica, social, biológica, pode complicar ao invés de esclarecer (e, em debates, isso é comum!).
O que é um relacionamento conjugal? Depende. Depende em que estrutura social estamos. Um relacionamento pode ser de dois ou de mais de dois e nada de estranhamento.

Para a nossa discussão, o relacionamento default, isto é, o normal ou geral na nossa sociedade (penso eu!), é o que apresenta um casal. Porém, mais recentemente, após a revolução sexual do sec. XX, a abertura de um relacionamento ficou mais flexível, com variações de diversas ordens. O default, no entanto, por hipótese, ainda é o que possui somente e necessariamente duas pessoas. Esta autosuficiência seria característica fundamental do conceito e estaria ameaçada, em termos teóricos, por dispositivos ad hoc, isto é, que se apresentam como suporte em um momento de necessidade teórica ou prática.

Pensemos em um conceito teórico, se ele não for, por si, aplicável a um dado universo de casos, de modo que precise de auxílio de adendos ou se, ao contrário, for tão geral que não delimite sua área de atuação, não podendo ser falseável, dizemos (Popper, Kuhn e os demais) que ele é um conceito trivial.

Em uma transposição prática, se um relacionamento default, que tem como autosuficiência um ponto central, tiver esse ponto afrouxado de modo que necessite de adendos que o flexionem em diversos graus para sobreviver, o trivializam. Um relacionamento passa a ser, assim, outra coisa.
A posteriori, é possível não haver mais um casal, mas essa noção, que integra o argumento, necessita de características de composição para a análise. Dada uma característica elencada, ela deve ser preservada no conceito. Temos que a característica x é essencial para a noção A. Se x for dispensável ou flexibilizável, a noção sofrerá modificações. Se, para ter salva a noção, preciso que x perca seu valor, x passa a não ser mais central, não?

Desse modo, se há mais de um na "relação", enquanto conceito, esse "um-a-mais" estaria fazendo parte do "casal" (pois é um adendo) contradizendo e trivializando o sistema. Ou seja, ou se tem um casal, ou se tem dois casais, três casais, etc. Mas um casal com adendos não dá (enquanto conceito!).


O argumento seria posto assim: há vários casais em jogo. Só que os casais (conjunto) não podem dividir os mesmos elementos. Pois o mesmo elemento não pode, por hipótese, servir a mais de um conjunto ao mesmo tempo. É a regra do jogo, dada a trivialização do sistema.

A trivialização do conceito de casal se dá em diversas esferas teóricas, e, inclusive, não teóricas!


Comentários

  1. o que vcs entendem de relacionamentos, queridas letradas?fazem psicologia tb?

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  2. Obrigada pela leitura do texto, em primeiro lugar! A questão central posta não é sobre relacionamentos, e sim sobre argumentos! Os relacionamentos em si são muito complexos para análise, e esse não é meu campo de interesse. Entretanto, quando se trata da parte conceitual, acho pertinente um olhar sobre a validade dos argumentos envolvidos. Assim, trouxe ao debate o CONCEITO de casal subjacente à discussão. Se quiser comentar/discutir sobre este aspecto, seja bem-vindo(a)!

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  3. Para efeito de descrição, do que quer que seja, é necessária a adoção de uma perspectiva com a finalidade de uma argumentação sustentável. Em termos bem, bem leigos, não se pode dar uma mordida maior que a boca.
    Como fica claro na leitura, a questão é sobre o CONCEITO casal e a forma de argumentação em torno deste.
    Relacionamentos podem ser abordados de diferentes perspectivas: psicológica -como sugeriste-, social, fisiológica, antrológica, filosófica, religiosa e por aí vai.
    Quanto ao que entendemos, cada pessoa tem uma visão particularizada e experienciada sobre relacionamentos - como espero que tenha a tua. Lembro ainda que há várias formas de relacionamentos, o que também constitui outras perspectivas.
    Além dessas perspectivas, há também a possibilidade de uma abordagem de interface com a linguística, como foi feito, e nenhuma delas precisa necessariamente estar relacionada com a psicologia. Tudo vai depender de posição e, consequentemente, o método, que assumirá para abordar o assunto.

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  4. Não sou da Letras, muito menos da Psicologia, na verdade, nem das áreas humanas,os quais teriam mais perícia e embasamento teórico para discutir a respeito de um assunto tão complexo e interessante.
    Apesar disso, meu ponto de vista acredita que o conceito da palavra, apresentada pela autora, demonstra exatamente o que se espera da realidade. Se um relacionamento precisa de fatores externos, significa que o relacionamento não se sustenta sozinho, e portanto tenderá a falhar. Ou então, realmente não possa ser considerado um relacionamento, mas algo diferente. Já temos algum neologismo para isso?

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  5. Pois é, 100 Noção!

    SE o conceito de relacionamento (casal) que assuma “autosuficiência” como um fator “não-necessário” ou “afrouxado” se compatibiliza com o senso comum, é fácil compreendermos uma boa aceitação dele. Porém , se, por hipótese, venhamos a defendê-lo como um conceito teoricamente válido, temos que encarar o problema da trivialização do sistema.

    Se assumirmos que o conceito de casal tal qual formalizamos (onde “autosuficiência”é um fator central) é compatível com o que se vislumbra da “realidade”, temos que observar para que outros fatores não entrem em contradição com essa característica – ou seja, não se nega a existência de fatores externos, mas esses fatores não podem implicar na perda de uma característica essencial -.

    Se assumirmos que fatores externos que contradizem essa característica são necessários para manter o conceito fiel a uma perspectiva de realidade, temos igualmente que assumir que a trivialização é inerente a esse sistema!

    Ou, então, assumimos uma nova perspectiva, e, assim, um novo conceito (como você também diz). Dada a criatividade das mentes para neologismos, acredito que haja inúmeros em vigor!!

    ps: peço desculpas pela demora, estava offline!

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