Com o calor fora de estação, todos pareciam um pouco alvoroçados. Ainda assim era um presente a temperatura acima dos 18ºC, dias ensolarados e noites estreladas, sem contar a lua. Era a segunda noite seguida de lua alaranjada. Apesar da maioria das pessoas, incluindo seu companheiro, estar feliz com isso, tudo que lhe resultava era um estado de sobressalto.
A briga com seu namorido já durava alguns minutos, entretanto não fazia mais sentido, nem sabia por que tinham começado. E a briga ficava mais intensa. Ele, então, se cansou e saiu do apartamento batendo porta. Com raiva, ela quebrou o espelho que tinham no quarto.
Atirou-se na cama e chorou até dormir. Despertou num susto e só encontrou escuridão. Podia ouvir que havia começado a ventar forte o bastante para ter assobio. Nunca gostou de ventanias e nem de escuro e nem de solidão. Puxou a colcha até cobrir a cabeça. Seus ombros estavam tensos, suas mãos crispadas e suas costas arrepiadas. Todo som a fazia erguer a cabeça. Algo, a qualquer instante, abriria a porta do quarto e não seria seu amado.
Lá fora o vento continuava seu reinado. Era a única coisa audível. Como queria ouvir vozes e buzinas.
Uma batida seguida de algo de quebrando veio da varanda. Tentou acender a luz, mas não havia energia. Os livros haviam virado, derrubando um vaso horroroso que ganharam de uma amiga, do namorado apenas. Esse foi o motivo da briga. Elas não se suportavam.
Abaixou-se para juntar os cacos e viu o reflexo da lua laranja. Olhou diretamente para ela ao mesmo tempo em que tentava apanhar os cacos. Um pedaço mais afiado furou-lhe o dedo. Recolheu a mão e por um momento teve a impressão de que a água se movia em sua direção. Ergueu-se rápido e prestou atenção. A água estava imóvel, mas opaca e meio viscosa.
A ideia de juntar os cacos se afastou de sua mente e recomeçou a chorar. De volta ao quarto, se atirou na cama e se cobriu. Estava ainda mais tensa e atenta. Qualquer ruído a fazia erguer a cabeça, e, com aquela ventania, ruídos não faltavam. Num instante o mundo parecia ser só ruído, no outro era tudo silêncio de expectativa.
O quarto ficou mais frio. Ouviu borbulhos vindo do lado em que o espelho quebrou. De gatinhas sobre a cama, procurou a origem. A semiescuridão não permitia distinguir os objetos direito. Contudo, era dali que o barulho provinha. Calafrio percorreu seu corpo.
Os cacos estavam se liquefazendo. Primeiro em água, depois em algo escuro, opaco e viscoso, como na varanda. Aquele líquido estava aumentando, ganhando forma. Tudo que conseguiu foi voltar para a cabeceira. Mal conseguia respirar.
Os cacos liquefeitos haviam se transformado em uma gárgula. A criatura tinha dois metros de altura. As asas eram uma membrana fina ligada dos tornozelos aos punhos. Os olhos eram vermelho sangue. O focinho era chato. Mostrava os dentes em um sorriso debochado. A criatura esticou o braço direito para pegar-lhe o pé.
Nesse instante, sua paralisia se dissolveu. Conseguiu se esquivar e se virou para fugir. Entretanto, sentiu a frieza das garras em torno de seu tornozelo. A gárgula a puxou com força. De volta aos cacos, para outro mundo.
O namorido voltou pela manhã. Sabia que tinha exagerado. Ela estava certa em ter ficado tão zangada. Logo que entrou, soube que o apartamento estava vazio. Encontrou o vaso quebrado e foi para o quarto. A cama estava desfeita, o lençol tinha três cortes verticais e os cacos do espelho ainda estavam ali.
Suspirou, ela devia ter ido trabalhar. Olhou mais uma vez para os cacos. Ela adorava aquele espelho. Por um segundo teve a impressão de vê-la nos reflexos, aflita, com medo. Mas foi só um segundo.
Buscou na cozinha a vassoura e uma pazinha para juntar os cacos. Antes de jogá-los fora, notou que havia uma gota de sangue em um deles. Deixou-os cair na lixeira com a sensação de que não a veria mais.
Amei! :O
ResponderExcluirQuero mais, Daisy, tava com saudades
:DDD
PS = moral do conto: nunca subestime uma briga de casal \o/