Opacidade

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.

Fernando Pessoa



Opacidade

O clandestino sentia que sentia. Era um sentimento forte, mas não o suficiente para compensar a existência. O sentimento de sentir os reflexos da existência fez emergir o sentimento de opacidade. Fazer-se ser, sentir-se ser e não agir enquanto ser, em qualquer lugar em que se fazia existir. Transeunte em si. Seu ser não se reconhecia, embora se distinguisse dos demais.

Toda vez que conhecia outros, que atravessava lugares, que sondava entre os tempos, sentia o mesmo sentimento. Este sim era forte e dolorosamente dolorido, quase físico. O clandestino tinha que respirar com mais vontade, pois precisava que o sangue circulasse com fúria o bastante para liberar o sentimento do coração e da mente. Aquele sentimento o dominava há tempos, e se não era o mesmo sentimento, parecia ser.
Quando o sentimento se aproximava, trazia consigo a visão do clandestino enquanto unidade, desnudo por dentro, vazio das coisas significativas. Aquele algo que o fazia parar e respirar e meditar em torno de si, de suas ações e omissões. O clandestino se punha a chorar. Como algo sem origem conhecida, impalpável, indizível se fazia sentido de modo tão concreto que o fazia agir? Mas aquela ação era reflexo, era inerente, era para si, então, em verdade, o clandestino ainda não agia.
O sentimento ainda o hospedava. Ele vinha, pois o clandestino não o compreendia e se o compreendia não alterava a si e se alterava não era o suficiente.
Eu vi aquele ser próximo a uma árvore, com o botão da camisa aberto, para facilitar a respiração. Perguntei se era opacidade. Ele acenou com a cabeça afirmativamente. Eu o segurei pela mão e o fiz sentar. Olhei em seus olhos a vermelhidão da dor, que transfigurava o seu rosto. Uma criança viu o meu gesto e se aproximou, olhou para o clandestino e sorriu. A criança era pequena e perguntou se ele estava bem. O clandestino a encarou e encarou a si. O sentimento de que aquele sentimento iria embora em breve se fez próximo.

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