Cão Raivoso

Mais um conto. Esse, saído direto do forno, sem qualquer revisão ou releitura. Toda e qualquer sugestão e comentário será valioso.

O dia foi longo, corrido, nervoso e, pior, ainda não tinha acabado. Ainda estava no ônibus a caminho de casa. Ao seu redor as pessoas espremiam-se assim como suas conversas para que coubessem no mesmo espaço bem delimitado. Apesar da temperatura baixa na rua, dentro do ônibus havia um mormaço. A chuva fina era o bastante para que se enclausurarem-se, mas não para temer respirar o mesmo ar infecto-contagioso. Tentou se desligar escorando a cabeça a cabeça no vidro frio. Continuava sentindo o cheiro de cachorro molhado, de creme fedorento para cabelos crespos, de cachaça de um senhor que discutia com sua esposa. Continuava cônscio da movimentação desordenada dos outros passageiros, principalmente de uma criança de aproximadamente sete anos. Também não conseguia se isolar da mesma música infantil que o pirralho gritava, nem das mulheres reclamando por estarem em pé, nem dos adolescentes discutindo quem pega quem. Nem mesmo do cara cachaceiro hostilizando sua mulher porque ela pediu que falasse mais baixo.

De olhos abertos, as coisas pareciam mudar, pelo menos a paisagem tinha mudado. Estava no seu bairro afastado do centro da cidade e neblina tinha se feito notar. Quase se desligara quando cheiro de leite azedo e mais alguma coisa impôs presença. A peste tanto pulou, tanto fez que vomitou. Pressionou as têmporas e o fedor cedeu espaço ao cheiro de água salgada. As barreiras, as paredes, o chão, tudo começava parecer trepidar. Contrariando toda racionalidade, ao fim de uma curva, no topo da lomba, um navio se concretizava. Enorme, velho, metálico e assombrado. Um apito soou e não estava mais no ônibus, caminhava pela rua no nevoeiro. A iluminação pouco fazia de seu trabalho. Não localizava outras pessoas e nem mesmo conseguia perceber suas presenças por meio da luz através da janela. Apenas ele e a neblina passavam pela neblina estrada normalmente movimentada. Apesar de continuar a trajetória do ônibus, estava de volta ao mesmo ponto do qual tinha avistado o navio.

Com a respiração rápida e superficial, os músculos se contraindo e a cabeça latejando, parou. Esfregou as mãos no rosto, notou um leve odor férreo e umidade. Conhecia bem aquele cheiro. Será que finalmente? Começou a tremer enquanto se autoanalizava. Havia um pouco de sangue nas mãos. Os nós dos dedos estavam escoriados, seus braços doídos, sua camisa esgarçada. Não sabia onde e nem quando perdeu o casaco. Novamente a maresia o tomou, talvez nunca tivesse deixado.

— O que eu fiz — gritou.

— O que tu fez? Que tal o que não fez — disse um homem rígido, entregando-lhe um esfregão ao mesmo tempo em que o apito soava. Estava no convés. — É melhor terminar rápido se não quer ficar na detenção.

Permaneceu algum tempo apoiando parte do peso no esfregão. Branco e cinza eram as cores predominantes no navio, além dele continuavam a desempenhar com afinco as tarefas designadas, certa resignação era percebida nos outros para além de seu ar de desconfiança e cansaço. Só uma mulher demonstrava revolta. Ela trazia aos marujos uma pasta branca com cheiro de peixe. Ninguém recusava, até agradeciam. Mas ela reclamava.

Observando essa rotina, nem percebeu que há muito tinha perdido a conta de quantas vezes limpou, lavou e lustrou o convés. As palmas das mãos latejavam e os dedos estavam rígidos, ainda assim sentiu urgência em continuar a tarefa. Mais uma vez a mulher retornou trazendo a pasta branca, desta vez, porém lançou ao chão. Não gostou de vê-la estragar seu trabalho, tinha acabado de limpar aquele trecho, antes que pudesse dizer algo os oficiais a cercaram. Dois, cada um segurando um braço, a fizeram olhar o capitão.

— Tubarões ou detenção?

Ao ouvir a segunda opção, a mulher ficou pálida e os marinheiros tiveram que sustentá-la. Ela olhou para além. Lágrimas e soluços fizeram a voz sair incerta:

— Eu sou inocente...


— Calabouço — decidiu, áspero, o capitão. A mulher foi arrastada, em choro convulsivo, para baixo. Soube, ele então, o que desconfiava: escolheria os tubarões. Tudo menos detenção. Continuou lavando até suas mãos sangrarem. O esfregão caiu de suas mãos e quicou no chão. Não era criminoso, não iria mais esfregar o convés.

— Tem sangue nas mãos marujo. Volta a limpar!

Não se moveu, encarou o capitão e estendeu as mãos.

— Detenção ou tubarões — os dois marinheiros o prenderam.

— Tubarões — todos os marujos suspenderam suas atividades, olhavam do homem para o capitão, enquanto o primeiro era carregado até a prancha.

— Pois que sejam os tubarões — soou a sirene.

O garotinho continuava pulando, gritando e encarando o homem que tapava os ouvidos e olhava para fora. Teve a impressão de ver um navio no asfalto. Virou para o moleque a tempo de vê-lo vomitar em sua direção. O homem levantou e, com uma única mão aberta, bateu a pequena cabeça contra o vidro. Alguns passageiros acudiram mãe e filho, enquanto os outros cuidavam da punição.

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