A subjetividade do sujeito poético no modo lírico não precisa necessariamente respeitar a interiorização própria desse sujeito, de modo que pode subvertê-la na superfície.
Tomemos, mesmo fora de contexto, dois poemas de Fernando Pessoa, observando a constituição explícita e implícita do eu-poético, pelo viés delineado em A poesia Lírica (REIS, 2003).
No poema D. Sebastião, Rei de Portugal, temos bem marcada a dimensão egocêntrica do sujeito:
D. Sebastião, Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Percebemos que o texto lírico potencializa os sentidos e os recursos da língua (a libertação do idioma, nas palavras de Carlos Reis), bem como manipula a relação da individualidade com o mundo. Assim, nesse poema, o sujeito poético, interiorizado na visão de sua própria audácia e consequente loucura, se volta para o estado de ser homem/mortal. Portanto, o indivíduo se distancia da própria condição, ao refletir sobre ela. É uma interiorização distanciada, onde o mundo é o próprio sujeito/homem.
Em referência à relação sensorial e cognitiva do eu com o mundo, Reis, em diálogo com Bousoño (1985), salienta o fato de que “‘esse conteúdo psíquico’ que nos é facultado tal como um conteúdo existente na vida real, não implica uma identificação com algo ou com alguém efectivamente existente (p. 309)”. Observando esse processo no poema, nos defrontamos com a entidade do título, que evoca uma série de representações acerca do sujeito que se apresenta. A individualidade, ao passo que tem relações fortes com um sujeito real, sujeito esse que exterioriza sua própria situação, é revitalizada por outra que não a anula, antes a reinterpreta. Esse tipo de caracterização do eu no texto lírico é diverso daquela expressa nos poemas Marinha e Liberdade, por exemplo.
Marinha
DITOSOS a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.
Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...
E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
O eu também está marcadamente expresso pela primeira pessoa gramatical, porém não evoca outro sujeito com o qual se identifica. A dimensão existencial do sujeito processa-se em relação aos outros, ao exterior. Na primeira estrofe, a pessoa lírica se põe em comparação implícita ao outro, externando seu pesar consigo mesmo. Figuras de linguagem são acionadas, transformando a realidade existente em um mundo individual. O mar, o cais, a maresia são dimensões do próprio ser e de sua realidade particular. A distância do eu com o mundo é muito pequena, onde ele e o mundo (con)fundem-se. Não há, como no primeiro caso, uma espécie de distanciamento interno, uma reflexão acerca do próprio ser, o que parece haver é uma interação com o exterior, uma subjetivação do mundo por uma olhar. Diferentemente, parece ocorrer em Liberdade.
AI QUE prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Neste caso, a subjetividade está não-explícita ou ainda subvertida. Não temos uma pessoa gramatical expressa no discurso e sim um mascaramento atrás de infinitivos e copulativos. Isso não significa a inexistência da interiorização, uma vez que o poema é arquitetado por juízos e pontos de vista. Há um maior distanciamento com as coisas-do-mundo tal que se cria uma dimensão irônica neste mundo. O sujeito se vê em uma realidade passível de críticas e se posiciona em relação a ela, interagindo com ela. O eu se expressa a partir daquilo que ele próprio critica, gerando uma aparente contradição, possível e compreensível pela dimensão poética do texto.
A subjetividade esteve presente nos três poemas, sob formas e a partir de processos diferentes de expressão do eu-lírico. A individualidade e a interiorização são elementos essenciais no modo lírico, nem sempre claramente expressos ou homogeneamente facetados.
Poemas extraídos de: PESSOA, F. Poesias. Porto Alegre, L&PM, 1996.
REIS, C. 2003. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. Porto Alegre, EDIPUCRS.
obs: texto adaptado de texto entregue para disciplina na Faculdade de Letras.
obs: texto adaptado de texto entregue para disciplina na Faculdade de Letras.
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