Casas de nuvens

A terceira mais nova numa família de nove irmãos não tem muita chance de se destacar. Os únicos com direito a algo seu, como uma personalidade, são a mais velha e o mais novo. Os demais são os irmãos do meio, uma massa amorfa perante os outros. Com certeza, Ana não se sentia assim, mas acreditava que lhe faltava algo essencial. Ah, como queria ser; e para ser tinha que aprender. Só que não podia, porque não possuía certidão de nascimento e ainda por cima devia cuidar dos dois irmãos mais novos. Às vezes conseguia fugir e chegar até a casa de um único cômodo onde uma moça curvada e raquítica tentava ensinar o pouco que sabia. Esses eram seus dias mais felizes e, a noite quando todos pareciam dormir, ela se aproximava dos irmãos mais velhos para contar o que havia aprendido. Mas, como eles estavam cansados, não conseguiam prestar atenção e acabavam dormindo ainda mais rápido.

Num dia de chuva muito forte, Ana sentou-se à porta e ficou olhando o nada. Sua irmã mais velha a espiava uma vez que outra, enquanto consertava as roupas das moças ricas da vila. Os pais dela saiam muito cedo para trabalhar na lavoura e os filhos, com mais de sete, acabavam trabalhando para outras famílias como babás, jardineiros e faxineiros. Ana ficava sozinha com os mais novos na maioria dos dias; hoje, porém, não. Estava triste, pois queria ir ouvir o fim da história de Alice no País da Maravilhas. Maria, a mais velha, cansada de vê-la ali, mandou-a passear um pouco. Tomar banho de chuva seria divertido. Ana nem mesmo esperou que sua irmã terminasse, saiu correndo, já que aquela altura a história podia ter acabado. Deveria ser muito rápida para ouvir pelo menos o fim.

Estava já no seu atalho quando a chuva forte tornou-se tempestade. Ana mal conseguia abrir os olhos e parar em pé tal era a força do vento. Derrubada mais uma vez, levantou-se e ao olhar para o lado viu a cabeça de um velho com chapéu sobre um muro e ela também padecia com a tempestade. Apavorada, retornou correndo para casa.

Naquela noite, não conseguiu dormir e passou a semana inteira com medo de passar por lá, porém queria tanto conhecer aquele mundo da moça raquítica. Quando surgiu uma nova oportunidade, foi. No momento em que tivesse que passar por aquele lugar, correria.

Fez como havia planejado; no entanto, na pressa de não ver, não viu a pedra no meio caminho e, sim, a cabeça decapitada. Paralisou horrorizada com a cabeça que se movia por trás do muro. Ela iria, mesmo sem pernas, até Ana.

Ana queria correr, mas a dor era muito grande. Imaginou que veria a cabeça flutuando em sua direção, no entanto, ela possuía corpo inteiro. O velhinho, dono da cabeça, abaixou-se um pouco e lhe estendeu a mão. Ana sentiu que podia aceitar a ajuda e caminharam em silêncio para trás do muro. Lá, ele a mandou se sentar numa cadeira de balanço na varanda, enquanto ele iria buscar curativos. Ela sabia que deveria ir naquele momento se quisesse saber as histórias da moça curvada, mas sua curiosidade sobre o senhor era maior. Então ficou.

O velho voltou com uma caixa branca e enquanto fazia os curativos falava sobre um mundo mágico. Um mundo de cavalheiros, bruxas boas e más, fadas, e lá havia fadas más, elfos, duendes, dragões, unicórnios, casas de nuvens sobre as águas de um lago maior do que todos que havia imaginado. E havia também pessoas comuns e incomuns, reis e rainhas, todavia o lugar estava triste. Um anjo, há muito, foi levado à força.

De repente, ele parou de falar. O curativo estava pronto. Podia ir embora. Ir? Por quê? Queria ficar e ouvir a história. Não, era tarde. Que voltasse outro dia e ele terminaria. Então ela foi, já com saudades. Naquela noite sonhou com aquele mundo além do muro e sentiu que possuía algo a mais: essencial.

Passaram-se quase quatro dias antes que conseguisse retornar; chegando lá, avistou o senhor no mesmo lugar da primeira vez, parecendo ter somente a cabeça. Quando a viu sorriu. Sentaram-se na mesma varanda do outro dia.

Ele contou que a fada tola queria viver em terra e, por isso, resolveu privar aquele lugar do seu anjo querido, filha de um casal bondoso e curandeiro. A tristeza pesaria sobre todos e as nuvens baixariam. Então numa noite sem lua, ela invadiu o lar do casal e raptou o anjo. Levou-o para terras longínquas e entregou-a a uma família grande e simples que jamais perceberia as asas douradas.

Quando amanheceu, a jovem mãe descobriu o que havia sido feito. Naquele dia o lago se encheu de águas salgadas.

E novamente, sem perceber, havia ficado tarde; e Ana precisava voltar. Justo agora? Sim. Ainda há tempo para o fim da história em um novo dia, disse o velho. Passou a mão no chapéu e o arrumou no lugar. Ana despediu-se e foi embora.

Na sua casa, a família começava a notar que Ana era diferente deles. Havia um dourado a lhe tingir a alma e sentiram medo que ela se fosse assim como veio. Lembraram-se do quanto eram tristes antes da menina surgir à porta. Não podiam perdê-la. Tinham que descobrir o que estava acontecendo. O irmão mais novo contou sobre o velho e as histórias dele. Temendo o que ele poderia estar fazendo a sua filha, procuraram ajuda, sem saber que, mais uma vez, Ana havia partido.

O velhinho estava somente com a cabeça aparecendo, como de costume. Olhava por cima do muro com os olhos cheios de saudade. Mais uma vez, sentaram-se na varanda. Havia uma mesinha com chá e pão com manteiga. Comeram conversando sobre a vida de Ana e ele demonstrou muita curiosidade sobre tudo. Acabada a refeição, retornaram ao mundo mágico do velho.

Vendo a tristeza do casal, todos começaram a sentir seu pesar. E as nuvens ameaçavam mergulhar no lago. A solução era mandar o velho mestre para além do lago salgado até o lugar onde o anjo foi feito prisioneiro. Ele não voltaria até achá-lo. Partiu e esperou muito tempo até encontrar um sinal sobre o paradeiro do anjo. O velho mestre sentia muita saudade de sua terra, principalmente ao nascer e ao pôr do sol. Nessas horas ele postava-se atrás de um muro e olhava para sua terra. Somente o anjo poderia levá-lo de volta, pois o lago virara mar e apenas asas poderiam vencê-lo.

Ana baixou a cabeça e viu atrás de si, no reflexo de uma poça, asas douradas encolhidas. O velho lhe estendeu a mão e a levou até o muro e ela viu, além do mar, o lugar mágico de onde veio. Os dois ouviram os pais adotivos vindo com outros vizinhos. Queriam forçá-la a ficar e machucar o velho mestre. Ana olhou assustada para o senhor. O que fariam? Mas ela sabia o que fazer. Abriu suas asas espalhando seu dourado por tudo, segurou o mestre pela mão e alçou vôo.

Os moradores nem conseguiam acreditar em tal beleza e apenas por um instante viram um lugar mágico além do muro. Um lugar onde lares de nuvens flutuavam sobre as águas.

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