Transposição e adaptação se tornaram termos ouvidos com freqüência tratando-se de livros e filmes ou filmes e livros. Na primeira dupla o filme é inspirado ou adaptado de um livro. Na segunda, é o filme ou série, devido ao seu sucesso, que é transformado em livro. Porém, para esta discussão só usaremos a primeira.
Livros, nos quais prevalecem as ações, são mais fáceis de serem adaptados, do que aqueles nos quais prevalecem o caráter psicológico e reflexivo. Não se está querendo dizer com isso que não possa ser feito um filme adaptado de um livro, apenas quando se trata do último aspecto o risco de perda de características da obra é maior.
No romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, prevalece o psicológico. Em verdade, Machado de Assis é o responsável pela introdução do romance psicológico na literatura brasileira. As personagens nessa obra se revelam através de reflexões, sobre si mesmo, no caso da personagem Brás Cubas, ou através dos olhos deste quando se trata das demais, incluindo a própria sociedade. Não nos são apresentadas descrições de espaços exteriores, mas sim da subjetividade das personagens, com todas suas contradições e problemas existenciais.
As reflexões presentes em suas obras se apresentam de forma mais explícita através dos diálogos que o narrador machadiano estabelece com o leitor virtual. O narrador guia, provoca, chama a atenção para o que diz.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas nos é apresentado um defunto autor, que não se difere dos demais narradores quanto ao caráter psicológico e reflexivo. Ele nos conta sua história a partir de sua morte, refletindo sobre ela e sobre sua vida e a sociedade da qual fez parte, guiando nossa leitura e nosso olhar sobre o lido. Por estar morto, não está mais preso a regras do convívio social, revelando defeitos e hipocrisias suas e das pessoas que conheceu em vida.
Sua condição de defunto também permite uma manipulação do tempo e do espaço, mantendo-os suspensos durante a narração. A ordem dada aos fatos é mais a que surge de reflexões do que a cronológica, um pensamento leva ao outro. O principal na narração não são os acontecimentos e, sim, as motivações por trás deles que revelam a personalidade das personagens e indiretamente da sociedade.
Esse espírito crítico e reflexivo se perdeu no filme homônimo lançado em 2001.
No filme, os fatos são apresentados numa ordem cronológica, sem uma forte ligação através de motivações e conseqüências derivadas da reflexão, transparecendo como critério de seleção o aspecto cômico e conquistador. Enquanto no livro, Brás Cubas critica o espírito mesquinho, seu e dos demais, no livro ele apresenta um espírito bonachão. Tanto é assim que os princípios/mandamentos, que à primeira vista se desconstroem através da comicidade e da aparente falta de lógica, não surgem como conseqüência do raciocínio, mas, sim como piada. É o caso do nariz. Na obra fica marcada a alusão à mesquinhez, o olhar o próprio nariz, no entanto no filme o apelo cômico foi tão forte que ofuscou totalmente a ironia.
Ao contrário do livro que nos prende com suas idas e vindas, tal qual um ébrio caminhando — como o próprio Machado descreve seu estilo nesse livro —, o filme enfada o telespectador com sua indecisão. Ora narrativo e reflexivo, pobre, mas reflexivo, ora vulgar devido ao apelo à comédia e à sexualidade.
Algo a se ressaltar positivamente no filme é a presença do emplasto. Não a apenas como remédio, mas, também, como conserto malfeito; remendo; pessoa enfermiça ou imprestável, inútil.
Assim como no livro, no filme Brás Cubas quer criar um remédio capaz de acabar com as melancolias humanas. Porém isso jamais passaria de um remendo, o problema não seria solucionado e sim mascarado. O emplasto também poderia servir para acabar com a inutilidade das pessoas, incluindo ele. Ou remetendo à última frase do livro: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria., o emplasto poderia ser, assim, ele e os demais. Tanto no livro quanto no filme, ao chegar ao fim, se percebe o nada que a personagem fez ou, melhor, não fez. Sendo o emplasto uma metáfora para seres imprestáveis de que a humanidade é constituída.
REFERÊNCIAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000213.pdf. Acesso em 28 maio, 2008.
PÓSTUMAS, Memórias. Direção e produção: André Klotzel. Intérpretes: Reginaldo Farias, Petrônio Gontijo, Viétia Rocha, Sônia Braga, Otávio Muller, Marcos Caruzo, Stepan Nercessian, Débora Duboc, Walmor Chagas, Nilda Spencer e outros. Roteiro: André Klotzel. Música: Mário Manga. Rio de Janeiro: Lumière, 2001. 1 DVD (101 min), color. Baseado na história de Machado de Assis.
Fazer uma adaptação da obra machadiana para um mass media realmente não é tarefa fácil. A adaptação cinematográfica de romances psicológicos exige muito labor por parte dos criadores, que devem usar da sensibilidade para transpor linguagens e formas. Eu tive contato com o filme antes do livro. Lembro da turma, no colégio, vendo o filme e adorando. Ele é realmente apelativo e fortemente cômico, o que agradou bastante a gurizada! Enquanto o filme é um tapa de luva, o livro é um soco no estômago.
ResponderExcluirRi muito vendo o filme, mas o impacto não foi o mesmo. Quando se termina o livro é como tu disse: um soco no estômago, bem na boca do estomago. Sensação assim, me é comum ao ler Tchekov.
ResponderExcluirPor falar nele, tem um conto que é bem ilustrativo do caráter da alma humana diante de acontecimentos atuais..o conto é " O Bilhete de Loteria". Muito bom.
ResponderExcluirÓtima ideia de post gurias! O blog de vocês está tão diversificado que temos que acompanha-lo sempre para ver a próxima surpresa!
ResponderExcluirFicamos feliz, pois procuramos fazer algo q faça o leitor sentir q valeu a pena conferir o blog!
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