Até duas semanas atrás eu acreditava que tudo não havia passado de um pesadelo. Eu estava andando em um parque com meu netinho quando ouvi um assovio melancólico. Na hora senti um arrepio. Durante setenta anos se manteve esquecido, escondido. Hoje, entretanto, sinto a necessidade de te contar o que aconteceu na alvorada daquele início de inverno.
Para chegar à escola, meu irmão e eu tínhamos que sair antes do alvorecer, passar por um matagal e caminharmos mais de quinhentos metros até encontrarmos nosso primeiro vizinho e então pegar o ônibus. Nossa mãe não aprovava nossa passagem pelo mato, preferia que fizéssemos o caminho mais longo e seguro. Seria melhor nem dormir em casa.
Como de costume saímos depois de nossa mãe e traçamos nosso caminho até o matagal. Víamos pouco por causa da neblina. Ouvíamos os nossos passos sobre a grama e gravetos congelados, nada mais. Caminhávamos rápido e em silêncio. Atentos a tudo. apesar de ser caminho costumeiro, o temíamos.
O ar estava tomado pelo cheiro de vegetação e terra impregnados de umidade. A claridade era parca e pálida. Entres aquelas árvores baixas e densas, sentíamo-nos oprimidos. Sabíamos ser os invasores, e a melodia assoviada anunciou que era chegada o momento da punição.
Aquele som baixo e arrastado tomou o pouco de ar que havia, nos fazendo acelerar o passo. Pouco importava a direção que tomávamos, o assovio aumentava. Os galhos das árvores e no chão nos agrediam o corpo e o rosto. A respiração era difícil, dolorosa e insuficiente.
Meu irmão me puxava para irmos mais rápido em meio àquela semi-claridade, enquanto aquele assovio funesto nos perseguia. Nem sabia mais onde estava. Não reconhecia mais nada em nosso caminho. Acabei tropeçando e caindo de joelhos. Ao tentar me erguer, meu irmão acabou machucando meu braço. Não conseguia me levantar nem parar de chorar. Eu estava, naquele momento, com medo até mesmo de meu irmão.
Ao desviar meu olhar do dele, tive a impressão de que tinha tropeçado no meu irmão deitado no chão. Pensei ser culpa da pouca luz, mas quando meu irmão olhou na mesma direção, murmurou "o assovio da bruxa", se escondeu e esperou. Ele sabia que não conseguiria me levantar e que nosso caçador viria até nós.
Já não sabia onde meu irmão estava e meu pânico e choro se intensificaram. Levantei com os braços estendidos para fugir, porém senti frio e percebi que me seguravam pelos ombros. O assovio estava muito próximo. Não tive nem tempo de virar antes de ouvir a pancada e o baque surdo. No mesmo instante o assovio cessou.
Meu irmão me puxou em direção oposta. Suas mãos estavam frias e úmidas. Quando, finalmente, encontramos a estrada, ele se ajoelhou a minha frente e, me segurando pela cintura, disse que teria que ir embora e não poderia voltar. Então ele me beijou na testa, tão leve que mal senti e se desfez em neblina.
Enquanto eu seguia caminho chorando, percebi que havia sangue na minha roupa e mão, onde meu irmão havia me segurado. Quando cheguei ao vizinho, o sol já aparecia sobre o horizonte. Passei a crer que foi pesadelo.
Me deixa te dar um último beijo. Sinto o toque frio nos ombros e ouço o assovio muito próximo a mim.
Este conto traz uma aurora de melancolia e ânsia. Ele me fez recordar Poe.
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