Sisifiano

Suspirou fundo e devagar. Seus olhos ardiam com a luz vermelha que vez ou outra o atingia. Os pés pareciam inexistentes. A camisa grudada ao corpo por baixo do terno lhe fazia com saudade o chuveiro. Mais uma vez a luz avermelhada do sol o atingiu e o fez desviar o rosto. Foi quando percebeu o pacote de papel pardo sozinho sob o banco. Esfregou as mãos úmidas na mão já amassada e esqueceu o pacote. Na última estação antes de começar o caminho de volta, esbarrou o olhar no embrulho. Sem saber o porquê, o levou consigo.
O soltou sobre a mesa juntamente com o pão, a margarina e o leite. Sua esposa, ao se preparar para preparar o café, perguntou que pacote era aquele. Ele respondeu com apenas um sacudir de ombros. Ela teve vontade de abrir, porém sentia que quem deveria fazer isso era seu marido.
Agora iniciando o mesmo ritual infrutífero dos dois últimos anos, João descobria a dimensão, a solidez e o mistério do pacote pardo. Resistente ao aperto do braço contra o corpo e aos empurrões dos outros corpos no trem. Todos como o pacote: sem peculiaridades além de existir, sem nome, sem destino, sem emprego. A única diferença era o cheiro, o pacote não cheivara a cansaço, nem a desespero, nem a esperança, nem a juventude, nem a falta de banho mesmo.
Desceu mais uma vez na estação do mercado. Mais uma vez entrou em um prédio estranho a ele, agora o fazendo se lembrar do pacote. Dentro do prédio, porém, tudo já tinha sido ouvido. Entraremos em contato, tenha um bom-dia. Não teve, nunca tinha.
No trem esperou que o dono do pacote aparecesse e o reclamasse. Tamborilava os dedos sobre o pacote e testava os pontos onde este se fechava. Por que não? Algo teria que se abrir para ele. Mal tinha levantado a aba e surgiu um obrigado-meu-pacote-procurei-ele-como-louco. Este lhe tomou o pacote e se misturou aos outros corpos. Era de novo a última parada antes da volta.

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