José Saramago retrata a Morte valendo-se das mais diversas facetas já exploradas pelos artistas ao longo da história da humanidade. Parece que a Morte sempre foi um mistério para o ser humano, uma vez que ele se preocupou em descrevê-la através dos mais variados tipos de expressão possíveis.
A Morte já foi representada como objeto de temor e, por vezes, como sinônimo de julgamento ou fim. Também foi explorada como algo a ser aguardado, enquanto processo não específico mas natural à existência humana, ou como algo bom, que traz alívio àqueles que sofrem. Muitas outras perspectivas foram traçadas, mais ou menos próximas a essas (e que merecem atenção!).
O escritor português José Saramago, em sua obra As Intermitências da Morte (2005), valeu-se de diferentes descrições conhecidas interculturalmente e deu vida a um ser historicamente enigmático. Enfim, de deus e da morte não se têm contato senão histórias, e esta não é mais que uma delas, diz o escritor (p. 146). Um paralelo pode ser traçado entre as características relacionadas a Ela e a imagem descrita pela mitologia egípcia. Pensemos algumas, a partir da obra As Melhores Histórias da Mitologia Egípcia (Seganfredo & Franchini, 2006).
Rá, a suprema divindade solar, possui uma barca, com a qual atravessa o Amanti, o noturno reino subterrâneo.
Um a um vão sendo transpostos os portões que representam as doze horas noturnas. São regiões escuras e desoladas, que somente a perícia do divino barqueiro pode vencer. (...) Há, também, além de réprobos que sofrem o castigo das ofensas perpetradas à divindade, muitas serpentes, ora erguidas e sibilantes, ora abatidas e agonizantes. (2006, p. 21)
Na obra, Saramago cria uma residência subterrânea para a Dentuça Arreganhada, a longa sombra de Tânatos.
Exceptuando esta cadeira e a mesa, exceptuando também os ficheiros e a gadanha, não há mais nada na sala, salvo aquela porta estreita que não sabemos para onde vai dar. (2005, p. 146)
(...) atravessou simplesmente o tecto da sala subterrânea, a enorme massa de terra que está por cima...(p.147)
No romance, o escritor indica duas qualidades ou categorias de morte, a mais baixa na escala refere-se à personagem central do enredo; já a segunda é tida como a suprema, a destruidora do Universo.
Esta segunda representação é a mais parecida com a figura mitológica egípcia, uma vez que, na tradição em foco, o ser que cria a vida e sentencia a morte é um ser supremo. No livro de Saramago, a morte é apresentada em uma hierarquia, da mesma maneira que há uma hierarquia entre as divindades egípcias. O autor relaciona a morte primeira à vida e aos costumes atuais. Na mitologia, o (s) deus (es) relacionado (s) à morte representa (m) figuras sobrehumanas, mas também possui (em) características comuns ao Homem:
A cabeça de Rá abandona, aos poucos, sua antiga forma de falcão para ir adquirindo a de um carneiro de grandes chifres anelados, enquanto a barca ingressa nas águas escuras e revoltas do Amanti. (2006:21)
Apesar de seu caráter duvidoso, Seth recebeu essa incumbência de seu eterno rival. (idem)
A morte, para Saramago, é uma dama, que possui incumbências e um trabalho monótono, diário e intransferível. Esta imagem é odiosa para alguns, dentro da trama, sendo comparada a um serial killer. Tal Dama é descrita sob várias formas: esqueleto embrulhado em um lençol; crânio descoberto; mulher jovem, mulher de idade madura; mulher de 36 anos de idade; ser de milhares de séculos; mulher formosa; sanguinário monstro de faces escancaradas, magros braços, capuz; figura sinistra; fantasma em panos brancos; gorda de preto, discreta, invisível; órbitas vazias; algo sem pés nem pernas; alguém que há muito tempo deixou de existir; entre outras figuras.
Ao mesmo tempo em que humana, a morte é divina:
Uma das cousas que sempre mais fadigam a morte é o esforço que tem de fazer sobre si mesma quando não quer ver tudo aquilo que em todos os lugares, simultaneamente, se lhe apresentam diante dos olhos. Também neste particular se parece muito a deus. (p. 147)
Na mitologia egípcia, Rá é o bisavô do deus subterrâneo, o deus senhor dos mortos Osíris.
Sentado num trono subterrâneo está Osíris, portando o “ankh” (o emblema da vida) e seu cetro recurvo. Diante dele, uma deusa mumificada segura uma balança, na qual devem ser pesados os corações de todos aqueles que ingressam definitivamente nos domínios de Osíris. (p. 22)
Saramago, ao invés de apresentar o cetro, coloca ao lado da morte a gadanha. Mas não é somente Osíris que detém os poderes da morte, já que Socáris, a divindade com a cabeça de falcão e a encarnação noturna e subterrânea do próprio Rá, também vive na noite eterna.
Osíris, igualmente à morte de Saramago, possuía uma vida anterior aos domínios dos mortos, já que foi um líder do Egito traído e assassinado por seu invejoso irmão Seth. Após dolorosa morte, Osíris rumou para a Mansão dos Mortos e, então, tornou-se o soberano absoluto do local.
Alto e imponente, tinha, como um bom deus nascido numa terra abrasada pelo sol, a pele da core do cobre. (p.45)
Para além das citadas, há inúmeras semelhanças entre a Morte descrita por Saramago e a Morte traçada pelo povo egípcio. As visões de mundo quanto à morte apresentam inúmeros pontos de convergência, independentemente de tempo e espaço.
A Morte ainda é mistério e plurifacetada. A Arte que o diga.
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